segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

A robustez das Intuições e o Assalto Tecnicista.

Por vezes parece-me que se perde muita tinta, papel e tempo a argumentar contra ou a favor de uma certa posição de uma perspectiva que, se esta impressão põe o dedo na ferida, tem de falhar. De um modo muito abstracto podemos ver a coisa assim: filósofo A propõe-se defender X apelando a certa intuição ou conjunto de intuições Y, que desenvolve apropriadamente. A isto filósofo B objecta, apresentando uma ontologia na qual aparentemente a intuição se perde. O problema da causalidade mental fornece um exemplo muito claro. Há uma série de pressupostos, como a distinção entre mente e corpo, e a prioridade causal, ou o primado do mundo físico, que apontam de um modo muito claro para problemas na explicação do lugar do mental no processo causal que leva à acção. É uma intuição robusta que está connosco desde pelo menos Descartes, e no entanto parece que certas lições ainda não foi aprendidas. E a lição parece-me ser esta: que se a intuição é robusta, o único modo de combater o problema é lidar directamente com os seus pressupostos, e não fazer reajustamentos técnicos à sua volta. Se a intuição é robusta seria incrível que a mudança de ontologia (se não for num espírito de resposta directa aos pressupostos do problema) eliminasse o problema em causa. O que acontece é que este surge outra vez, com nova roupagem, normalmente de um modo mais técnico. É claro que é preciso responder a estas objecções. O que acho incrível, é que ao fim de um certo tempo e número razoável de tentativas se continue a abordar o problema exactamente do mesmo modo.

O monismo anómalo de Davidson é um exemplo curioso. É um exemplo de uma teoria do mental que tem aparentemente uma resposta ao problema da causalidade mental, e no entanto foi discutido ao longo destes últimos 30 anos sobretudo porque parece conduzir ao epifenomenismo. Por um lado parece mostrar que espécimes (tokens) mentais são causalmente relevantes, mas não convenceu ninguém quanto à relevância das propriedades mentais (há muito mais a dizer sobre este problema, digo algo mais aqui). Mas dentro da perspectiva de que falo tudo faz sentido. Davidson mantém a distinção entre o mental e o físico no que toca às propriedades, mas identifica os espécimes mentais com os físicos. Assim no que toca aos espécimes, elimina uma dos pressupostos que levam ao problema, a distinção entre a mente e o corpo, mas não o faz em relação às propriedades, e por isso o problema surge praticamente na mesma neste ponto, mas com outros pressupostos ontológicos.

Nos últimos 30 anos, o número de artigos publicados sobre causalidade mental foi prodigioso, e no entanto a abordagem tem sido a de manter este erro, com consequências previsíveis. O que se passa é que alguém propõe um novo modo de conceber, ou os eventos, ou a noção de causalidade, ou o modo de compreender as propriedades, e no entanto, no número seguinte da revista alguém mostra o problema da causalidade mental bem vivo, isto porque o autor do artigo não lidou apropriadamente com os pressupostos que deram origem ao problema, mas sim elaborou com um tecnicismo cada vez mais extraordinário, num novo modelo, os pressupostos anteriores.

O mesmo verifico na questão do livre-arbítrio. Por exemplo, nas intuições de Frankfurt contra o princípio de possibilidades alternativas, é-nos apresentado uma intuição muito forte em que se pretende mostrar que a responsabilidade moral não necessita de possibilidades alternativas. Um dos modos frequentes na literatura de responder a esta intuição tem sido a de questionar a teoria da acção que a intuição pressupõe, ou como conceber os eventos e outros tecnicismos. Mas seria incrível se uma intuição robusta pudesse ser ultrapassada deste modo. Não me entendam mal – não estou a dizer que não se responda a estas objecções. È essencial responder-lhes. É em parte porque se respondeu com sucesso a elas que sabemos que a intuições que apresentamos são robustas e não triviais. O que estou a dizer é que ao fim de umas quantas tentativas deste género parece incrível não levar a sério a intuição e notar que algo de fundamental está em jogo, e não um simples problema técnico de coerência interna. O que é preciso é perceber que mais um reajuste aqui ou ali não vai resolver o problema e que temos de lidar com ele directamente, com os seus pressupostos que lhe dá origem. Combater intuição, o sumo filosófico, e não os detalhes.
Será que esta impressão adquirida nestas áreas em que tenho trabalho se generaliza? Ou terá sido má sorte? A minha impressão é que se generaliza...

Miguel Amen

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