Quero considerar a seguinte questão: Dado o que sabemos sobre a física actual, qual é exactamente a relevância do determinismo? Não será uma questão puramente histórica, que entreteve os nossos antepassados, mas nada tem a dizer sobre o problema actual do livre-arbítrio?
O determinismo causal, por exemplo, diz-nos que o estado do mundo num dado momento fixa o estado do mundo num momento posterior, de acordo com as leis da natureza. Assim num mundo determinista não há mais do que uma forma de o mundo ser a cada instante. Este apresenta-se como uma linha de comboio sem bifurcações, ou encruzilhadas. Mas a versão ortodoxa da mecânica quântica oferece uma visão do mundo segundo a qual o estado do mundo num dado momento é compatível com vários estados distintos num momento posterior. Assim a mecânica quântica apresenta um mundo indeterminista, caracterizado por haver, pelo menos uma bifurcação no estado possível das coisas, pelo menos dois possíveis futuros compatíveis com as leis da natureza e o estado inicial do mundo. Neste mundo a linha de comboio tem bifurcações, momentos claros de possibilidades alternativas.
Não obstante a mecânica quântica há várias razões para a persistência da questão do determinismo nos debates contemporâneos sobre o livre-arbítrio. Vejamos quais são estes, por ordem de importância:
1. Uma razão aponta para o facto histórico de que as posições libertárias, onde se apresenta uma versão positiva do livre-arbítrio têm dependido de um apelo a dualismos, almas, substâncias causadores e outras entidades estranhas a uma certa concepção do naturalismo. O que se apresenta como dando uma vantagem dialéctica ao compatibilismo.
2.Enquanto a versão ortodoxa da mecânica quântica diz-nos que os fenómenos quânticos são genuinamente indeterminados, há um debate com importância, na qual esta posição é colocada em causa e onde se defende a possibilidade de uma versão determinista da mecânica quântica. Note-se que este argumento é mais forte do que aquele que afirmaria que nenhuma teoria científica pode ser provada como verdadeira, e a forteriori, a questão do determinismo faria sentido. O argumento é o de que dentro da própria comunidade científica existe e tem existido quem duvide que o indeterminismo da mecânica quântica seja ontológica. Tanto a versão de Bohm, das “variáveis escondidas” como a dos “mundos múltiplos” defendida, entre outros, por Graham, Michael Lockwwod and David Deutsch são deterministas.
3.Mesmo supondo que a física contemporânea é genuinamente indeterminada ao nível quântico não é claro que isto seja significativo ao nível macroscópico. Em sistemas tão grandes como o cérebro onde os nossos desejos e intenções se manifestam, podemos continuar a pensar que para propósitos práticos estes são sistemas determinados. Ted Honderich por exemplo, mantém esta posição.
4.O argumento de que o indeterminismo parece excluir a possibilidade do livre arbítrio, visto que não permite que o agente tenha controle nas suas escolhas. Uma escolha livre, por exemplo, não é o mesmo que um movimento indeterminado em nós. Assim, quem quer defender o livre-arbítrio tem de o fazer pressupondo o determinismo. Há aqui não só a ideia de uma insuficiência do indeterminismo para fundamentar a possibilidade de actos e decisões livres, mas também a de que o indeterminismo é incompatível com o livre arbítrio pois é incompatível com o controlo do agente perante a sua acção. Hobbes , Hume e Hobart defenderam versões deste argumento.
5.Enquanto o indeterminismo quântico se foi tornando ortodoxia ao longo do século XX, o contrário tem sucedido nas ciências que de uma forma mais óbvia e imediata nos informam sobre a condição humana; a biologia, a neurociência, a psicologia, a psiquiatria e as ciências sociais e comportamentais. Aqui, a ideia de que o comportamento humano é influenciado por causas que não estão sob o nosso controlo tem sido importante para convencer muita gente de que nós estamos condicionados de uma forma determinante nas nossas acções por causas para lá do nosso controle. Como exemplo considere-se a compreensão cada vez maior dos factores genéticos e hereditários na formação do nosso carácter, e as forças psíquicas e inconscientes que determinam muito do nosso comportamento sem que o saibamos ou possamos controlar, como nos diz a psicanalise. Veja-se por exemplo o que diz Daniel M. Wegner sobre a psicologia
“Uma equipe de psicólogos poderia estudar os pensamentos, emoções e motivos por ti relatados, o teu material genético e a tua história educacional, experiência e desenvolvimento, a tua situação social e cultural, as tuas memórias e tempos de reacção, a tua fisiologia e neuroanatomia, assim como muitas outras coisas. Se eles, de alguma forma, tivessem acesso a toda informação de que precisassem, a suposição da psicologia é a de que poderiam desnudar os mecanismos que dão origem a todo o teu comportamento e assim, poderiam decerto explicar porque pegaste neste livro neste momento”
Esta nascente compreensão do ser humano apresenta-o cada vez mais determinado.
6. Mas a meu ver a razão principal para reflectir no determinismo é a de que a compreensão do problema do livre-arbítrio passa pela compreensão dos problemas que o determinismo apresenta à possibilidade do livre-arbítrio. Isto é, o estudo da relação do problema do livre-arbítrio com a questão do determinismo, ilumina o que se quer saber, quais os valores em causa, revela a estrutura do problema, sem a qual muita da motivação para o incompatibilismo e o libertismo poderia perder-se.
A dialéctica entre o compatibilista e o incompatibilista, mostra o determinismo como um terreno fértil para compreender a importância do controle, do carácter, das possibilidades alternativas, o problema da responsabilidade, etc.
Compreender o que o determinismo impossibilita (se é que impossibilita) ilumina muito do que uma versão positiva do livre-arbítrio tem de oferecer.
Estas são razões que mostram como a questão do determinismo pode não só ser importante, como e apesar de não serem decisivas (longe disso, como se pode ver em (1)) podem apoiar a tese do determinismo.
segunda-feira, 22 de outubro de 2007
A relevância do determinismo
Publicada por Miguel Amen à(s) 13:49
Etiquetas: Determinismo, Livre-arbítrio
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário