quinta-feira, 25 de outubro de 2007

A Importância da Metafisica


Quero examinar uma estratégia, senão idêntica, semelhante no espírito, de deflacionar a questão do livre arbítrio e da causalidade mental. Em ambas apela-se às nossas práticas correntes para justificar a crença quer no livre-arbítrio quer na causalidade mental.
Ambas, a meu ver, falham pela mesma razão, o que não é de admirar, visto como já referi neste blog, há uma conexão muito grande entre estes dois problemas que se centra na possibilidade de agência.

Quando se discute o problema da causalidade mental, e se fala da necessidade de vindicar o nosso uso de explicações psicológicas assume-se o realismo causal. Isto é, quando se dá uma explicação causal do género “o João comprou a garrafa de água porque tinha sede” estamos a assumir que as razões do João de facto causam a sua acção. Em particular, que o seu desejo por água teve um papel causal relevante no movimento do seu corpo. Já discuti o problema da causalidade mental neste blog, veja-se por exemplo aqui, e discuti algumas das dificuldades típicas deste problema para teorias particulares da relação mente corpo. Na verdade, julgo o problema da causalidade mental insolúvel dado os pressupostos de fisicalismo não redutivo, onde ultimamente se tem centrado o problema. Não vou agora discutir as razões deste cepticismo, (muitas delas podem ser encontradas aqui) o que ficará para outra altura.

Mas a verdade é que alguns filósofos têm tentado salvar o problema através do que só se poderá chamar de um certo irrealismo causal. A ideia é inverter a relação de dependência entre explicação e causação. Acima vimos que o realismo causal implica que uma explicação causal é verdadeira somente se as propriedades citadas na explicação são de facto propriedades com um papel causal no evento a explicar. Mas estes filósofos, impressionados com a nossa prática explanatória, sobretudo com o nosso uso sofisticado de explicações psicológicas, pensam que é altura de retirar à metafísica o peso excessivo que tem tido na questão da causalidade mental. É-nos sugerido que um bocadinho de reflexão na nossa prática diária, eficaz, e indispensável de nos compreendermos uns aos outros através do idioma intencional, seria suficiente para vindicar a crença de que as propriedades intencionais são causalmente relevantes.

Tyler Burge, um defensor desta estratégia, pensa, correctamente, que as discussões metafísicas e os pressupostos metafísicos que levam às dificuldades com a causalidade mental são muito mais duvidosos e injustificados do que as nossas razões, de ordem prática e pré-teóricas, para rejeitar o epifenomenismo. Burge no entanto vai mais longe e extrai daqui a ideia de que dado o falhanço da metafísica em explicar o problema da causalidade mental está na hora de tomar uma atitude menos metafísica e admitir que as nossas práticas são suficientes para legitimar o uso das explicações psicológicas. Burge não é o único a tomar esta posição, Lynne Baker propõe que se entenda o conceito de causalidade como um conceito explanatório. E dada a nossa prática e uso sistemático da explicação causal psicológica o problema da causalidade mental simplesmente desaparece, ou deveria desaparecer.

Há várias maneiras de responder a esta proposta. Jaegwon Kim defendeu com algum cuidado a ideia de que há algo de cognitivamente dissonante na ideia de duas explicações suficientes de um mesmo fenómeno. Afinal, num caso de causalidade mental teríamos uma explicação psicológica e teríamos sempre à mão uma explicação fisiológica do mesmo fenómeno. Explicações que pretendem ser completas. Mas dado o carácter epistémico de qualquer explicação, a multiplicação de explicações de um mesmo evento não trás a unificação ou iluminação cognitiva que gostaríamos. Afinal queremos saber qual a relação entre as explicações: se são independentes, então como podem explicar o mesmo evento, senão não são, então como estão relacionadas. O que nos parece levar a questões metafísicas uma vez mais, e a recolocar o problema. Esta seria, apropriadamente desenvolvida, uma possível resposta a Burge e amigos. Contudo a resposta que me interessa é diferente e vai mais fundo.
Antes de a discutir, contudo, quero analisar um problema algo semelhante que se pode pôr em relação à questão do livre-arbítrio e como a resposta que pretendo dar ao primeiro problema ilumina também a do segundo.

Peter Strawson propôs uma influente concepção a respeito do problema do livre-arbítrio que é muito semelhante à de Baker e Burge na medida em que defende que para compreender o problema do livre-arbítrio adequadamente temos de prestar atenção não a intrincadas concepções metafísicas; que se debruçam sobre o determinismo ou o indeterminismo – mas sim dar atenção às nossas práticas correntes e às atitudes decorrentes destas praticas quando, dia-a-dia, no nosso contacto com os outros atribuímos a cada um responsabilidade pelo que faz. Strawson defende que quando considerarmos as pessoas à nossa volta responsáveis pelas suas acções estamos preparados para ter várias atitudes para com elas, como admiração, ressentimento, indignação, gratidão, etc., ao que ele chamou de “atitudes reactivas”. De acordo com Strawson, o problema metafísico não é relevante, pois a responsabilidade moral é adequadamente justificada pela nossa adopção das atitudes reactivas uns para com os outros.

O modo como Strawson chega a esta posição é muito semelhante a de Burge e Baker. Por um lado temos uma discussão interminável entre o compatibilista e o incompatibilista acerca da possibilidade do livre-arbítrio que está longe de se decidir. Por outro temos uma queixa do incompatibilista e do libertista contra o compatibilismo que Strawson pensa estar justificada – que a teoria moral do compatibilista é necessariamente de ordem prática e diz respeito ao mantimento de certa ordem social. Por exemplo, que não faz sentido dizer que alguém merece ir preso pelo que ele fez, mas porque o que fez tem de ser evitado. Mesmo a ideia de merecimento parece perder muito do seu sentido, visto que ele vai preso não porque merece, mas para evitar certas coisas que essa pessoa poderia fazer que achamos indesejáveis. Strawson, considera com o incompatibilista, a meu ver correctamente, que esta forma aguada e derivativa de responsabilidade insuficiente. Isto porque parece óbvio que há mais nas nossas práticas e atitudes reactivas que a mera utilidade social. No entanto, Strawson julga insatisfatório o modo como o incompatibilista reage a esta queixa. O incompatibilista afirma que esta noção insatisfatória de responsabilidade advém do determinismo – O que cria imediatamente um movimento contra o determinismo e dá uma razão ao indeterminismo para se afirmar. Impulsionando a dialéctica do livre-arbítrio no seu caminho infindo. Por isso, tal como Baker e Burge, Strawson acha que temos de deixar de pensar em termos metafísicos, mas em termos das nossas práticas morais – são elas e nada mais que sustêm a possibilidade de dignidade humana.

A teoria de Strawson, como a de Burge e Baker, têm um problema comum, que não é o de um certo desprezo pela realidade, visto que estas práticas referidas como justificatórias são bem reais, mas pela metafísica que o contexto de onde os problemas surgem pressupõe. Strawson pensa que não é possível pôr em causa a responsabilidade moral devido a questões metafísicas visto que a responsabilidade moral tem por base práticas humanas que não depende de qualquer metafísica. Não é só que ele pense que é psicologicamente impossível abandonar estas práticas, o que parece muito plausível. Mais importante para Strawson parece ser a ideia de que a questão de saber se é ou não racional comprometermo-nos com as “atitudes reactivas” face ao determinismo ou a qualquer sistema metafísico é absurdo dado o carácter inalienável, enquanto humanos, perante estas atitudes. Este sentimento é frequente no debate da causalidade mental, e está patente nos argumentos de Baker e Burge acima discutidos. Há a ideia sempre presente de que a ubíqua explicação psicológica nas transacções humanas é algo que tem de ser compreendido filosoficamente, apesar de ninguém realmente acreditar (apesar de haver cépticos) que o epifenomenismo poderá ser verdadeiro. Mas dadas as dificuldades metafísicas em dar uma resposta satisfatória ao problema da causalidade mental, estamos a um passo das atitudes de Baker e Burge.

A meu ver há aqui algo de profundamente errado. Penso que este argumento não está adequadamente a compreender o que está em causa caso o epifenomenismo ou o determinismo seja verdadeiro. Pois mesmo que não seja possível para nós enquanto humanos rejeitar quer a causalidade mental quer a responsabilidade moral e a atitudes reactivas há algo que a metafísica do mundo parece ameaçar. Já referi isto no passado e tem que ver com o facto de que tanto o epifenomenismo como o determinismo (se os argumentos do incompatibilista forem aceites) serem ameaças à possibilidade de agentes no mundo. Nós não queremos ser marionetas, nós queremos intervir no mundo, como seres livres capazes de impor a nossa vontade nas coisas – e é aqui que parece ancorar a possibilidade de responsabilidade e dignidade. Mas certas concepções metafísicas parecem implicar que nós não somos mais do que marionetas.

Assim, se é ou não psicológica ou racionalmente manter as atitudes reactivas, ou acreditarmos na causalidade mental, tal não parece ser uma contribuição apropriada para o debate, pois não discute sequer a questão fundamental. Pois pode ser que nós sejamos bonecos nas mãos de um deus qualquer, bonecos a que não é possível pensar que são bonecos ou encarar-se como tal. A possibilidade de nós sermos marionetas é posta pela metafísica das coisas – e como uma marioneta não é um alvo adequado para a atribuição de responsabilidade moral ou objecto de dignidade, mesmo que para nós não seja possível aceitar tal estado das coisas ou viver de acordo com estes factos, a nossas atitudes reactivas e explicações psicológicas podem não passar, apesar de todas estas práticas que as pressupõem e que lhe são essenciais, de moeda falsa.

Jerry Fodor, num contexto de discussão do problema da causalidade mental diz, dramaticamente

“Se não é literalmente verdade que o meu querer é causalmente responsável pelo meu buscar, e a minha comichão é causalmente responsável pelo meu coçar, e o meu acreditar é causalmente responsável pelo meu dizer...se nada disto é literalmente verdade, então praticamente tudo em que acredito acerca de seja o que for é falso e é o fim do mundo.”

Mas o fim do mundo, como vimos atrás, não é o da catástrofe prática de termos de abandonar as atitudes reactivas ou ter de deixar de usar explicações psicológicas. Pode ser que tal não seja psicologicamente possível, nem racionalmente requerido de nós. Mas não deixa de ser verdade que estamos perante uma ameaça séria à nossa autoconcepção. Esta pode ser ilustrada através de uma comparação da nossa situação existencial vis-à-vis a metafísica com o de certas ilusões perceptuais.
Lembremo-nos da conhecida ilusão de Muller-Lyer (a imagem acima) na qual nos é apresentado duas linhas do mesmo tamanho, sabemos que são do mesmo tamanho (tente medi-las) e no entanto não conseguimos deixar de vê-las como uma sendo maior do que outra. Do mesmo modo, a metafísica das coisas pode mostrar-nos que apesar de não sermos mais do que marionetas, não conseguimos deixar de nos ver como seres responsáveis, inteligentes, racionais, e o activos no mundo.

O que está em causa, como já disse, é a possibilidade de agência, sem a qual não somos diferentes das marionetas. Mas para sermos mais do que simples marionetas, precisamos de uma resposta positiva ao problema metafísico da causalidade mental e do livre-arbítrio.
É de notar, quão semelhante é a dialéctica de Burge, Baker e de Strawson. Tal não é uma coincidência.

Sem comentários: