sábado, 6 de outubro de 2007

Coacção e Liberdade

Não basta ser ameaçado para se ser coagido. É preciso que essa ameaça nos impressione devidamente; que pensemos que quem a faz tenha a capacidade de a executar, que acreditemos que se não fizermos como quer, vai fazer o prometido, e que o prometido seja suficientemente sério para que a hipótese de não aceder se torne psicologicamente difícil. E enquanto podemos olhar para uma pessoa que foi ameaçada como perfeitamente responsável pelos seus actos já em relação a uma pessoa coagida temos a tendência a ver uma diminuição da responsabilidade. Esta, suponho, depende de um qualquer cálculo que relaciona a enormidade da ameaça com a enormidade da acção que nos intimam. Mas nada depende deste cálculo exacto para o que se segue. O que me interessa é compreender algumas coisas acerca da natureza da coacção que me surgiram ao ler Harry Frankfurt.

Imaginemos o seguinte, Jones é ameaçado por Black – Ou Jones mata o presidente ou Black mata a família do Jones. De um modo usual acharíamos que Jones perdeu de imediato muito da sua liberdade, pois está a ser coagido. Mas será que a nossa noção de coacção é inteiramente captada aqui, ou há mais a dizer. Isto, porque me parece que a descrição feita é compatível com Jones não estar a ser coagido. Suponhamos os seguintes casos

1) Jones acha o presidente um homem notável, que fez imenso pelo seu país. Nunca de livre vontade faria o que Black lhe exige.
2) Jones acha o presidente um homem execrável. Momentos antes de receber a ameaça de Black, tinha decidido matar o Presidente. A ameaça deixa-o de rastos, preocupadíssimo com a sua família, e faz tudo que lhe mandam a fim de recuperar a família.
3) Jones acha o presidente um homem execrável. Momentos antes de receber a ameaça de Black tinha decidido matar o Presidente. A ameaça deixa-o preocupado com a sua família, e faria o que Black exige se não tivesse já tomado a decisão que tomou, e por isso executa o que lhe pedem de bom grado, pois é o que quer fazer.


(1) Capta a noção central da coacção. Pois não há dúvida que quando Jones mata o presidente o faz contra a sua vontade, para salvar a sua família. Ele faz o que faz por causa da ameaça de Black e nada mais. Assim, neste aspecto (2) é muito mais parecido com (1) do que com (3). Em (2) Jones mata o presidente para salvar a sua família, apesar de não ser contra a sua vontade. Já em (3) Jones faz o que faz por causa da sua vontade. A ameaça pode dar-lhe mais determinação ou focagem, mas não é a razão que o leva a matar o presidente.

Frankfurt pensa, a meu ver correctamente, que em (3) Jones é responsável pelo que faz, apesar de não poder agir de outro modo, contudo em (1) e (2) esta responsabilidade está claramente diminuída senão mesmo ausente. Mostra isto que uma pessoa pode ser coagida e no entanto ser responsável pelo que faz, como (3) sugere? A intuição, a meu ver correcta, de Frankfurt, é que (3) não retrata um caso de coacção. Contudo Frankfurt fica-se por aqui e não dá razões para esta concepção. Mas penso que se pode chegar a um critério sem grandes dificuldades.

O problema de (3), caso seja entendido como um caso de coacção, é que torna a coacção compatível com a não diminuição de responsabilidade. Em (3) as razões que levam Jones a matar o presidente são as suas razões, apesar de que se ele não as tivesse teria agido da mesma maneira. Mas o caso é tal em que a ameaça não é a motivação para a sua acção e por isso não tem papel no que Jones de facto faz. Exteriormente, de um ponto de vista do Juiz, digamos, pode ser que os casos (2) e (3) sejam idênticos, mas isto é porque supomos que ambos são na verdade idênticos a (1). Mas esta situação é revogável, quando sabemos mais.

Penso que (1) e (2) são exemplos de coacção mas (3) não porque o conceito de coacção tem um elemento indissociável de diminuição de liberdade. É por causa desta diminuição que olhamos para (1) e (2) e encontramos razões para desculparmos Jones. Quando Frankfurt ataca o princípio de possibilidades alternativas, defendendo assim que não é necessário possibilidades alternativas para a responsabilidade moral, decerto que não quer dissociar completamente a ideia de responsabilidade da de liberdade. E o conceito de coacção é um conceito de diminuição de liberdade.
Recordemos duas características que parecem centrais para a compreensão tradicional do livre-arbítrio:

a) Depende de nós como escolhemos (somos nós que escolhemos) de entre um leque de possibilidades alternativas.
b) A origem ou fonte das nossas escolhas e acções está em nós e não em qualquer outrem sobre o qual não temos controle.

Frankfurt, defende que a responsabilidade moral não depende de (a). E de facto, ao olharmos para Jones no caso (3) parece-nos que é responsável pelo que faz apesar de não poder fazer de outro modo. (Claro que não poder fazer de outro modo aqui é uma questão psicológica ou social e não metafísica. Mas, para nós, no dia a dia e no tribunal isto é o suficiente – Afinal quando discutimos o problema da liberdade em relação à analise da coacção não estamos, de qualquer forma, a discutir o problema metafísico do livre-arbítrio.) Mas se entendermos o problema da coacção em relação a (b) tudo faz muito mais sentido. O individuo coagido perde liberdade porque a origem da sua escolha não esta nele mas sim nos motivos sinistros de outrem, sobre o qual não tem controlo. E é porque perde liberdade que o indivíduo coagido não é responsável pelo que faz, ou não é tão responsável pelo que faz (esta qualificação deve-se ao calculo sempre necessário entre a execução da ameaça e o exigido). Mas em (3) tal não se verifica, pois a origem da acção de Jones está nele e não em Black. Em (3) Jones faz o que faz porque tal é o que ele quer fazer. Portanto faz o que faz em liberdade. A liberdade de Jones, neste caso, não tem origem na noção de possibilidades alternativas, mas na origem das razões para a acção.
Jones em (1) tem menos liberdade quando esta coagido pois o que ele faz não é o que gostaria da fazer. Ele faz o que outrem quer de modo a evitar o que ele julga ser um mal maior. O mesmo sucede em (2), pois Jones age não devido às suas razões, aquelas que o levaram a querer matar o presidente, mas devido à ameaça de matar a sua família. Em (3) contudo Jones age de acordo e por causa das suas razões, por causa de quem é e deseja ser – com liberdade e responsabilidade.

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