sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Tudo Uma Questão de Sorte?


Ontem, porque era dia de Darwin, estive a ler vário material biográfico e cientifico sobre Darwin e o darwinismo. A dada altura, George Williams, no meio de uma discussão onde está a defender a ideia do gene como um pacote de informação diz o seguinte,

“O simples facto de ter começado a usar computador há cerca de quinze anos pode ter contribuído para as minhas ideias nesta matéria. O processo constante de transferência de informação de um meio físico para outro e a capacidade de recuperar a mesma informação no meio original traz de volta a distinção entre informação e matéria.”

Pode ser que Williams esteja apenas a confabular para contar uma história interessante. Mas suponhamos que o uso do computador foi de facto um ingrediente sem o qual ele não teria chegado a esta distinção. Se Williams tivesse uma costela de luddita ou tivesse tido uma experiência qualquer desagradável com uma máquina de escrever na infância, teria possivelmente continuado a escrever à mão em vez de usar o computador e o tipo de estímulo que o computador lhe ofereceu poderia nunca ter surgido. Assim, um passo importante no darwinismo, teria de esperar um pouco mais por outro descobridor.

Esta história nem será a mais interessante para descrever algo que é demasiado banal. A história da ciência está cheia de fenómenos insólitos desta natureza. Suponho que se estamos a falar de sorte no processo de descoberta poderia pensar-se que o caso de Alexander Fleming seria mais apropriado. Fleming voltou de férias para descobrir que umas placas com culturas de microrganismos, por ele esquecidas no laboratório, tinham sido contaminadas por um bolor, e à volta deste não havia mais bactérias. Um passo essencial que iria levar à descoberta da penicilina. A sorte está em todo lado.

Mas o que me importa mais aqui é a natureza da sorte no processo de deliberação. O modo como a presença ou ausência de certa informação, estimulo, crença, desejo etc., pode alterar o processo de decisão. Na interpretação que faço de Williams, o estimulo dado pela sua experiência com o computador é um facto decisivo nas suas reflexões sobre a natureza do gene. Algo fora do seu controlo, uma experiência bizarra na infância com uma máquina de escrever, poderia ter alterado consideravelmente a história do darwinismo.

O mesmo se passa em muitas histórias de detectives. Depois de muitas horas a pensar no assunto, já desesperado com a falta de progresso alguém diz algo aparentemente banal e fora do tema, por exemplo, um rapaz que vem entregar a piza menciona um problema no motor da mota, ou o detective vê um poster publicitário aparentemente sem relação, e ah! ah!, solução encontrada. E o detective salva a cidade de um bando de terroristas. É honrado e louvado pela cidade.

Comparemos duas histórias, em tudo iguais, excepto que numa alguém diz o aparte que desencadeia o pingue-pongue mental que leva à solução do problema e no outro isso não acontece. No primeiro caso, Jack Bauer (já agora) salva a escola da bomba que os terroristas lá tinham posto, na outra história o aparte não é dito, não resolve o problema a tempo, a bomba explode e muitos meninos morrem. Na primeira é honrado, louvado pela cidade. O Herói respeitado e louvado por todos sobe na hierarquiza da policia e vive uma vida exemplar de cidadania. Na segunda é aberto um processo contra ele por incompetência, começa a beber, deixa a policia e morre esquecido e infeliz algures muito antes do seu tempo.

Tudo é igual até ao momento em que o rapaz que entrega a piza aparece em cena, e no entanto algo fora do controle do agente, como o rapaz mencionar ou não mencionar o problema com a mota, leva a destinos radicalmente diferentes.

A sorte apesar de diminuir o controle do agente em muitos casos, nem sempre é um impedimento à concretização dos seus objectivos e por isso muitas vezes não diminui de todo a responsabilidade do agente apesar de diminuição do controlo.

Um assassino a contrato, que se dispõe a matar o presidente a cem metros de distância e realiza o objectivo não vai muito longe dizendo que foi tudo uma questão de sorte, ou neste caso, visto que se está a defender, de azar. Suponhamos que ele apresenta um registro das suas sessões de treino ao alvo que mostram que àquela distância ele só acerta 10% das vezes no alvo. Será que estaríamos inclinados a desculpa-lo pela morte do presidente? “Sou culpado pela tentativa e intenção de matar o presidente, mas em nove em cada dez tentativas não o teria morto, por favor levem isso em consideração e pensem no azar que tive”. É claro que não, ele também é responsável pela morte.

O caso de Jack Bauer é diferente. Qualquer coisa não bate certo. Se num caso ele é louvado e honrado, como pode uma diferença, sobre a qual ele não tem qualquer controlo, levar a uma avaliação do seu caso tão diferente?

2 comentários:

Vitor Guerreiro disse...

Curiosamente, na série televisiva "Dr. House", quase sem excepção, os casos são resolvidos assim: uma afirmação aparentemente banal e irrelacionada dá ao nosso protagonista a analogia de ouro que resolve o quebra-cabeças apresentado pela história principal.

Parece-me haver também um dado que pode pesar na resposta à questão do louvor: é que, pelo menos a seguirmos as séries televisivas, só o protagonista ou um número reduzido de indivíduos, na mesma circunstância, consegue raciocinar produtivamente a partir da fortuita locução banal ou irrelacionada. E só pode fazê-lo não porque seja epistemicamente superior aos outros todos mas porque, por exemplo, há muito tempo que trabalha na resolução do problema e isso deu-lhe as condições de que precisava para fazer a dita inferência, que de contrário talvez lhe passasse despercebida a analogia.

Podemos aplicar aqui uma crítica de Nozick à noção rawlsiana de que as diferenças nas vantagens e aptidões naturais são "moralmente arbitrárias de um ponto de vista moral". - o problema parece mesmo o da arbitrariedade de louvar ou condenar com base num factor tão irrisório como a sorte. Mas acontece que também o facto de um entre milhões de espermatozóides fertilizar o óvulo é "arbitrário de um ponto de vista moral"... isto não significa que a existência de qualquer pessoa não tenha importância moral. Por outras palavras: coisas moralmente importantes podem muito bem decorrer de coisas moralmente arbitrárias. O facto é que ao fazer as inferências que salvam o dia, House torna-se merecedor do louvor, por muito arbitrário que isso seja, ou por muito grande que fosse a probabilidade de o paciente morrer caso o doutor não ouvisse a locução feliz e fortuita.

Miguel Amen disse...

Excelente exemplo Vítor. O Dr House apresenta praticamente em todos os episódios este tipo de situações. Como é a única série que faço algum esforço para ver estamos perante um caso de azar nítido no tipo de considerações que me vieram à mente. Ou um problema de engenharia mais vasto!

Concordo quando dizes que a sorte não elimina por si só a responsabilidade moral. Aliás apresento um caso no texto. O assassino que se decide a matar as vítimas pelo lançamento de um dado não deixa de ser responsável pela intenção de matar e de executar a vitima, mesmo que a probabilidade de não matar seja 5 em 6. O exemplo apresentado por ti é outro, pois toda a sorte e acaso envolvidos na formação de um humano pode ser irrelevante para a sua importância moral. Por exemplo se esta depender de alguma capacidade racional e de sofrimento. Não faltaram exemplos. Mas isso não significa que em certos casos a sorte não diminua ou mesmo elimine a responsabilidade moral. O exemplo do texto pretende sugerir isso.