quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Uma fonte inesgotável de Inquietação Filosófica

Publiquei ontem aqui

Wilfrid Sellars no artigo “PHILOSOPHY AND THE SCIENTIFIC IMAGE OF MAN” descreveu a filosofia como a tentativa de conciliar duas imagens do mundo; a imagem manifesta e a imagem científica. A imagem manifesta apresenta o homem como um agente, a intervir no mundo para satisfazer os seus desejos e vontade.
A imagem científica apresenta o homem como um sistema complexo físico-químico, sujeito a leis naturais.

Nos pontos de encontro deste conflito, zonas sísmicas como a consciência, a acção, o livre-arbítrio, surge, para mim, a inquietação filosófica e os problemas que mais me importam. Julgo que esta discrição de Sellars da origem dos problemas filosóficos é muito comum para filósofos na área da filosofia da mente, e é patente de um modo muito claro na obra do filósofo John Searle. Recentemente Frank Jackson descreve algo semelhante como origem dos problemas filosóficos que o interessam: como conciliar o que pensamos que sabemos sobre nós mesmos, com o que a ciência nos diz e vai descobrindo sobre nós.

O projecto de conciliar estas imagens é explícito no projecto filosófico de Donald Davidson, em particular quando julga o anomalismo do mental como uma condição necessária para a liberdade da acção. Temos assim um exemplo concreto deste conflito em acção e uma concepção do mental desenvolvida com o propósito de conciliar estas duas imagens, tentado no entanto respeitar as intuições por detrás das mesmas. No fim do artigo “acontecimentos mentais” podemos ler o seguinte,

“ Explicamos as acções livres de um homem, por exemplo, apelando aos seus desejos, hábitos, conhecimento, percepções. Tais explicações do comportamento intencional funcionam num enquadramento conceptual afastado do alcance directo da lei física descrevendo causa e efeito, razão e acção, como aspectos de uma representação do agente humano. O anomalismo do mental é assim uma condição necessária para ver a acção como autónoma.”

A ideia de Davidson parece ser esta: Não há leis psicofísicas nem psicológicas estritas, logo não podemos de forma rigorosa prever o comportamento humano, porquanto o baseemos no conhecimento da psicologia destes. Por mais que saibamos, ao íntimo detalhe, da psicologia de um indivíduo, jamais poderemos com precisão saber as suas próximas decisões ou escolhas, os seus desejos próximos ou como vai governar a sua vida.
Compare-se isto com o que diz Daniel M. Wegner sobre a psicologia“Uma equipe de psicólogos poderia estudar os pensamentos, emoções e motivos por ti relatados, o teu material genético e a tua história educacional, experiência e desenvolvimento, a tua situação social e cultural, as tuas memórias e tempos de reacção, a tua fisiologia e neuroanatomia, assim como muitas outras coisas. Se eles, de alguma forma, tivessem acesso a toda informação de que precisassem, a suposição da psicologia é a de que poderiam desnudar os mecanismos que dão origem a todo o teu comportamento e assim, poderiam decerto explicar porque pegaste neste livro neste momento”
O conflito é claro. Se o que a psicologia científica nos diz é verdade então muito do que pensávamos que sabíamos sobre nós não pode ser verdade. Pode parecer que escolhemos as nossas acções livremente, autonomamente, mas se calhar, dado o que diz Wegner, isto é uma ilusão.

Davidson nega tudo isto. Nega a existência de tais leis, e por conseguinte a possibilidade de uma psicologia científica. Por mais que se saiba da psicologia do homem, dado a inexistência de leis estritas que regem o comportamento humano, não é possível ir mais além do que o avançar de generalizações mais ou menos precisas acerca do comportamento humano.
Mas note-se que estas generalizações não parecem ameaçar a liberdade humana, pelo contrário, estas parecem ser o tipo de generalizações que compactam muito do nosso conhecimento psicológico, de nós e dos outros. Por exemplo, achamos que se alguém até hoje é de confiança, honesto, atencioso para com os outros, responsável, sem ponta de violência, não iria por 10000 euros torturar uma criança. Afinal isto é o que representa em parte conhecer o carácter de alguém, e tal não é de todo uma ameaça à liberdade humana, pelo contrário. Mas também sabemos que por vezes surpresas acontecem, o que dá sal à vida em sociedade.

Davidson parece pensar que dado que não há leis que subsumam os estados psicológicos humanos, não é o caso que dadas certas crenças X e certos desejos Y, acção Z seja inevitável, e que isto seria suficiente para a autonomia da acção humano, autónoma em relação à força cega da leis estritas que regem o mundo físico. O nosso ritmo não é, assim, o mesmo que faz dançar os planetas. Davidson como uma espécie de anti-Newton.

Mas agora olhemos para a imagem científica e que para Davidson todo o acontecimento mental é idêntico a algum acontecimento físico, e assim é possível, a cada instante, captar fisicamente, todos os acontecimentos que constituem esse instante. Mas isto significa que todos estes acontecimentos, fisicamente descritos, são regidos por leis estritas. E assim, ao contrário do que Davidson nos diz, é possível prever em forma de lei e estritamente o estado futuro do mundo e dos corpos nele.

Dado isto a autonomia que queríamos preservar parece resumir-se a isto: enquanto usamos o idioma intencional, enquanto nos baseamos nas razões dos agentes para prever e calcular os seus movimentos futuros, enquanto, portanto nos mantemos no discurso da imagem manifesta, não conseguimos mais do que oferecer generalizações, mais ou menos vagas. Contudo dado que cada acontecimento mental é idêntico a um acontecimento físico, é possível saber estritamente o estado futuro das coisas. Parece que a autonomia reside na dissonância entre a incapacidade de prever baseado no intencional, em relação à exactidão nomológico do físico. Mas o problema para Davidson é que não deixa de ser verdade que tudo que nos sucede de acordo com esta teoria é assim regido pela lei física.

Davidson parece assim explicar não a autonomia humana, mas a ilusão da mesma. Mas se acreditamos e levamos a sério a imagem manifesta e a necessidade da conciliação, a inquietação mantém-se e a busca continua.

Miguel Amen

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