terça-feira, 2 de junho de 2009

Sobre a Cisão Principal na Filosofia Contemporânea


Há qualquer coisa de faz de conta no debate sobre a filosofia analítica e continental; Afinal se se tem verdadeiros problemas e inquietações filosóficas, se se quer respostas plausíveis e não arbitrárias então a escolha é clara. Como diz o Williamson abaixo, o Rei vai mesmo nu. Confesso que já não tenho muita paciência para ler ou discutir o assunto. Mas o Desidério é mestre consumado e consegue pegar em algo já tão velho e relho e criar uma leitura verdadeiramente interessante. Aqui: Mais uma vez, com verve e paixão.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Timothy Williamson

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Tudo Uma Questão de Sorte?


Ontem, porque era dia de Darwin, estive a ler vário material biográfico e cientifico sobre Darwin e o darwinismo. A dada altura, George Williams, no meio de uma discussão onde está a defender a ideia do gene como um pacote de informação diz o seguinte,

“O simples facto de ter começado a usar computador há cerca de quinze anos pode ter contribuído para as minhas ideias nesta matéria. O processo constante de transferência de informação de um meio físico para outro e a capacidade de recuperar a mesma informação no meio original traz de volta a distinção entre informação e matéria.”

Pode ser que Williams esteja apenas a confabular para contar uma história interessante. Mas suponhamos que o uso do computador foi de facto um ingrediente sem o qual ele não teria chegado a esta distinção. Se Williams tivesse uma costela de luddita ou tivesse tido uma experiência qualquer desagradável com uma máquina de escrever na infância, teria possivelmente continuado a escrever à mão em vez de usar o computador e o tipo de estímulo que o computador lhe ofereceu poderia nunca ter surgido. Assim, um passo importante no darwinismo, teria de esperar um pouco mais por outro descobridor.

Esta história nem será a mais interessante para descrever algo que é demasiado banal. A história da ciência está cheia de fenómenos insólitos desta natureza. Suponho que se estamos a falar de sorte no processo de descoberta poderia pensar-se que o caso de Alexander Fleming seria mais apropriado. Fleming voltou de férias para descobrir que umas placas com culturas de microrganismos, por ele esquecidas no laboratório, tinham sido contaminadas por um bolor, e à volta deste não havia mais bactérias. Um passo essencial que iria levar à descoberta da penicilina. A sorte está em todo lado.

Mas o que me importa mais aqui é a natureza da sorte no processo de deliberação. O modo como a presença ou ausência de certa informação, estimulo, crença, desejo etc., pode alterar o processo de decisão. Na interpretação que faço de Williams, o estimulo dado pela sua experiência com o computador é um facto decisivo nas suas reflexões sobre a natureza do gene. Algo fora do seu controlo, uma experiência bizarra na infância com uma máquina de escrever, poderia ter alterado consideravelmente a história do darwinismo.

O mesmo se passa em muitas histórias de detectives. Depois de muitas horas a pensar no assunto, já desesperado com a falta de progresso alguém diz algo aparentemente banal e fora do tema, por exemplo, um rapaz que vem entregar a piza menciona um problema no motor da mota, ou o detective vê um poster publicitário aparentemente sem relação, e ah! ah!, solução encontrada. E o detective salva a cidade de um bando de terroristas. É honrado e louvado pela cidade.

Comparemos duas histórias, em tudo iguais, excepto que numa alguém diz o aparte que desencadeia o pingue-pongue mental que leva à solução do problema e no outro isso não acontece. No primeiro caso, Jack Bauer (já agora) salva a escola da bomba que os terroristas lá tinham posto, na outra história o aparte não é dito, não resolve o problema a tempo, a bomba explode e muitos meninos morrem. Na primeira é honrado, louvado pela cidade. O Herói respeitado e louvado por todos sobe na hierarquiza da policia e vive uma vida exemplar de cidadania. Na segunda é aberto um processo contra ele por incompetência, começa a beber, deixa a policia e morre esquecido e infeliz algures muito antes do seu tempo.

Tudo é igual até ao momento em que o rapaz que entrega a piza aparece em cena, e no entanto algo fora do controle do agente, como o rapaz mencionar ou não mencionar o problema com a mota, leva a destinos radicalmente diferentes.

A sorte apesar de diminuir o controle do agente em muitos casos, nem sempre é um impedimento à concretização dos seus objectivos e por isso muitas vezes não diminui de todo a responsabilidade do agente apesar de diminuição do controlo.

Um assassino a contrato, que se dispõe a matar o presidente a cem metros de distância e realiza o objectivo não vai muito longe dizendo que foi tudo uma questão de sorte, ou neste caso, visto que se está a defender, de azar. Suponhamos que ele apresenta um registro das suas sessões de treino ao alvo que mostram que àquela distância ele só acerta 10% das vezes no alvo. Será que estaríamos inclinados a desculpa-lo pela morte do presidente? “Sou culpado pela tentativa e intenção de matar o presidente, mas em nove em cada dez tentativas não o teria morto, por favor levem isso em consideração e pensem no azar que tive”. É claro que não, ele também é responsável pela morte.

O caso de Jack Bauer é diferente. Qualquer coisa não bate certo. Se num caso ele é louvado e honrado, como pode uma diferença, sobre a qual ele não tem qualquer controlo, levar a uma avaliação do seu caso tão diferente?

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Parabéns Sr. Darwin!




Aqui levamos Darwin muito a sério e para comemorar o seu aniversário impõe-se uma reflexão inspirada no legado darwinista.

Pensar em Darwin, especialmente no contexto deste blog, significa pensar na continuidade dos homens e dos animais. Da falta de privilegio do homem no seio da vida na terra, e da soberba que a problemática do livre-arbítrio pressupõe. Em verdade parece-me por vezes que esta problemática é ainda fruto de uma mentalidade religiosa que sobrevive em nós e nos coloca acima dos animais. Eles lá em baixo, nós cá em cima, escolhidos, privilegiados, racionais, e moralmente comprometidos.

E se por acaso não acreditamos em deus, ainda assim acreditamos num mundo melhor, onde reciclamos, cooperamos, escolhemos o bem sobre o mal, e moldamos o mundo de acordo com a nossa utopia preferida. Acreditamos que podemos controlar a evolução da sociedade, através de escolhas apropriadas que nos conduzirão a um mundo melhor, com menos sofrimento, maior felicidade e liberdade.

Mas só podemos pensar assim se não levarmos de facto a sério o naturalismo darwiniano. Se ainda pensamos que somos especiais. O refúgio último do humanista é a racionalidade. Deus pode não existir, mas nós consideramos e deliberamos sobre o mundo à nossa volta, e agimos com base em razões e valores. E por isso somos responsáveis e é justo que nos avaliem moralmente. Pensamos que somos, como diz Shakespeare, nobres na razão e infinitos nas nossas faculdades mentais. Infelizmente não somos.

O processo que nos trouxe aqui, a nós e aos animais, não garante qualquer optimização das nossas capacidades mentais. Um resultado possível do processo de selecção natural do homem seria um no qual a nossa memória, o processo pelo qual formamos crenças, a nossa capacidade de deliberação e decisão, aquilo que nos dá felicidade, fossem perfeitos. Isto seria possível, mas não aconteceu. Afinal de contas a selecção natural trabalha sobre mutações genéticas, algumas das quais, necessárias para criar boas memórias, ou decisores mais eficientes, nunca surgiram.

Os nossos módulos mentais, são o resultado de contingências históricas e na maioria das vezes soluções imperfeitas para os problemas da existência. A extensão desta irracionalidade é verdadeiramente notável, quando comparada com a história da carochinha em que crescemos. Tanto a psicologia evolucionária como a economia comportamental apresentam exemplos atrás de exemplos de irracionalidade. Para um catalogo de quanto nós não estamos em controlo no processo de decisão veja-se o livro de Dan Arieli “Predictable irracionality”.

Levar isto a sério significa tomar com uma dose substancial de cepticismo as afirmações da racionalidade humana.

Mas há uma questão importante nesta queda do homem. Ao decompor o arco-íris, o cientista não lhe rouba a beleza. Mas a descentralização do homem leva-lhe, parece-me, qualquer pretensão à moralidade. E aqui a perda é bem real. Afinal há um valor firme que se perde. Louvor, culpa, obrigação, dever, tudo isto perece se o privilégio humano que esse valor superlativo que é o livre-arbítrio for pela janela fora. A ideia que nós escolhemos o nosso destino, que nos criamos a nós e à sociedade, depende de uma distância significativa entre nós e os animais. Distancia essa que era medida pela racionalidade.

Em certa medida o livre-arbítrio é o repositório de todas as mitologias acerca da dignidade humana. Que somos deliberadores racionais, eis talvez a maior fantasia que o humanismo tem contado.

A implicação desta crença para a natureza humana é uma versão do problema do livre-arbítrio e da responsabilidade moral. E se ninguém é verdadeiramente louvável ou culpável pelos seus actos, se ninguém merece nada pelo que faz, então estamos perante uma perda significativa. O problema é levar esta filosofia a sério. Talvez o filósofo Smilansky tenha razão e não possamos viver sem a ilusão do livre-arbítrio. O que, dado o modo convoluto e imperfeito com que formamos crenças, seja uma razão para nos vermos diferente dos animais.

O facto de não ser uma razão suficientemente boa leva-nos, ou à afirmação de uma forma de vida e terminar a questionação por aqui, ou ao início e recomeçar a filosofar outra vez.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Teleologia

Mais uma entrada para o Dicionário de AA

Teleologia
Tradicionalmente a teleologia examina o propósito, finalidade ou função na natureza.
Por exemplo, os olhos das mais variadas espécies, por diferentes que sejam, têm a mesma função e o mesmo propósito de permitir a visão aos organismos, como o propósito, finalidade ou função do coração é bombear o sangue.
E dado a função do coração, podemos então fornecer a seguinte explicação teleológica: “Temos o coração para que bombeie o sangue”. Explicamos a existência do coração através de algo que aparentemente surge depois, o seu propósito ou finalidade, isto é, o bombear do sangue.

Por um lado, esta linguagem é natural e extensivamente usada na biologia, mas, por outro lado, falar de propósitos e funções remete-nos para uma intenção e para o ser que a teve, o que já não é assim tão natural em ciência, que normalmente trabalha com relações causais. Quando referimos os artefactos humanos e dizemos que servem para isto ou para aquilo, por exemplo, que o propósito dos travões é para travar e da faca para cortar, sabemos que assim é porque alguém assim quis e fez, adequando os meios aos fins. Exactamente o mesmo parece acontecer na natureza quando contemplamos a complexidade orgânica dos organismos, como no caso do olho e do coração, apelando assim a uma intencionalidade criativa por detrás da origem dos seres vivos.

Mas talvez o maior problema para aqueles que viam a biologia como necessitando de uma estrutura teórica científica era tanto o facto de a teleologia parecer ser incompatível com a explicação mecanicista das ciências físicas como a preocupação relacionada de que o uso das noções de propósito e causa finais se não fossem naturalizadas poderiam causar problemas devido à inversão do sentido normal da causalidade e ao facto de que o objectivo final que supostamente é a causa, poder não ser atingido.
Como pode o bombear do sangue explicar causalmente algo que surge anteriormente, o coração?
Não implica isto ir para trás no tempo e causar algo? Por causa desta dificuldade muitos julgaram que as explicações teleológicas não tinham lugar na ciência. O que significaria que a biologia, por exemplo, teria algo por explicar dado que usa sistematicamente explicações teleológicas. Contudo, com o advento das teorias de Darwin, muito destas ansiedades se dissiparam.

O que justifica o uso do pensamento teleológico em biologia, é-nos dito, não é o facto de os organismos serem o fim de uma vontade criadora; afinal de contas, o darwinismo mostra como os organismos podem ser melhor explicados recorrendo à selecção natural. O que justifica é o facto de os organismos estarem adaptados às condições de vida em que se encontram. É porque os organismos exibem adaptações que parecem ter sido criados com o fim de existirem nas condições em que se encontram. Se os organismos não exibissem adaptações, então não dariam a aparência de terem sido criados, mas também não teriam sido seleccionados. Mas porque foram seleccionados pelo mecanismo que Darwin propôs segue-se que exibem adaptação e consequentemente parece que foram criados.

O modo teleológico usado em biologia não deve ser tomado de uma forma literal, que é de facto impedido pela explicação darwinismo, mas sim como uma metáfora que abre pontos de partida para a investigação do mundo orgânico – metodologicamente, o uso do pensamento teleológico é rico. O uso da teleologia é justificado pelo simples facto de haver adaptação.

Donald Davidson

Outra entrada para o Dicionário de AA.

Davidson, Donald (1917-2003)
Filósofo Americano que na segunda metade do sec.XX teve um papel marcante na filosofia contemporânea. Apesar de ter trabalhado em áreas tão diversas como filosofia da mente e psicologia, ética, epistemologia, semântica e teorias da verdade, o seu legado filosófico é considerado particularmente sistemático e exibe um todo coerente raro. Foi especialmente influente na filosofia da mente e da acção.

Duas das teses que defendeu e que marcaram toda uma geração de filósofos são o anomalismo do mental, e a ideia de que uma explicação da acção que apele a crenças e desejos é uma forma de explicação causal.

O anomalismo do mental consiste essencialmente na tese de que o domínio do mental não é regido por leis estritas, leis sem excepções. Isto é, de que não há leis psicofísicas nem psicológicas estritas. Assim Davidson pensa que a psicologia não é uma ciência, seguindo o modelo da física (Davidson afirma que a psicologia é mais como a filosofia de que como a ciência), nem é redutível à física, pois a inexistência de leis psicofísicas impossibilita a existência de leis-ponte, vista por muitos filósofos como uma condição necessária para a redução do mental ao físico.

O argumento oferecido por Davidson para sustentar o anomalismo do mental é complicado e difícil, no entanto podemos dizer duas palavras para dar uma ideia do que se trata. Davidson pensa que a racionalidade e a normatividade são elementos constitutivos do mental. Isto é, são parte integrante da identidade do mental, não podendo haver estados mentais sem que os conceitos de racionalidade e normatividade se apliquem. A normatividade do mental implica certos princípios que nos dizem como as coisas devem ser. Como por exemplo, se o Pedro acredita que há ovnis e vida noutras galáxias, então deveria acreditar que há ovnis, e se o José tem boas razões para acreditar em ovnis então deveria (injunção racional) acreditar em ovnis. Contudo estes conceitos não são parte integrante da identidade do físico.
Podemos ver assim a razão do anomalismo do mental: Para Davidson, a existência de leis psicofísicas significaria um estreitamento demasiado forte do mental e do físico, correndo-se o risco de perderem a sua identidade fundamentalmente diferente; que a normatividade do mental se impusesse no mundo físico, ou que o físico levasse ao esbatimento da normatividade do mental.

Para Davidson as razões, i.e., crenças e desejos, são causas. Quando o Pedro bebe um copo de água, o seu desejo por água não só justifica e ilumina o seu comportamento como também causa a sua acção. De acordo com Davidson, a existência de uma relação causal entre razões e acções é a única forma de encontrar a razão que não só justifica a acção, mas também que a explica. Este problema é claro no caso de existirem mais do que uma razão que justifique uma acção mas em que apenas uma levou de facto à acção. Imaginemos que o Pedro para além de ter sede, precisa de tomar um comprimido. O facto de precisar de tomar o comprimido justificaria a acção de beber o copo de água. Assim ambas as razões justificam a acção, mas qual delas explica a acção? Isto é, qual delas leva de facto à acção? Davidson pensa que só há uma resposta satisfatória a esta pergunta, que só há um modo de explicar a acção e que para tal é preciso recorrer à ideia de causalidade. A acção é explicada pela razão que a causou, neste caso, o desejo por água.

Estas ideias são defendidas nos artigos seminais “Mental Events” (1970) e “Actions, Reasons, and Causes”(1963) ambos no livro “Essays on Actions and Events” (Oxford: Clarendon Press, 2001)Ver, ACÇÂO, FILOSOFIA DA ACÇÂO, INTENÇÂO

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Quarto Chinês

Mais um entrada para o Dicionário de AA.

Quarto Chinês (o Argumento do)
O argumento do quarto chinês, avançado por John Searle em 1980 num artigo intitulado “Minds, Brains and Programs”, pretende mostrar que a implementação de um programa de computador não é por si só suficiente para a instanciação, por parte dos computadores, de estados mentais genuínos. Searle ataca assim uma tese que considera central no projecto de investigação que denomina de Inteligência Artificial forte: Que um computador adequadamente programado tem estados cognitivos genuínos. Para refutar esta tese, Searle elabora uma experiência mental com o objectivo de mostrar um computador adequadamente programado a executar o seu programa (a implementar o seu programa) e no entanto não há qualquer cognição relevante.
Imagine-se que existe um programa para falar chinês que o faça tão bem como qualquer falante nativo de chinês e portanto indistinguível destes nesta habilidade (Que passasse então o Teste de Turing para falar chinês). Imagine-se, que um de nós que não saiba falar chinês esta fechado num quarto, onde há caixas com símbolos chineses, um grande livro em português, onde está escrito o programa de computador para falar chinês, e uma entrada no quarto, para os inputs e outputs. Nós, fechados no quarto, estamos a executar o programa de computador; de vez em quando são introduzidos no quarto uma série de símbolos, as perguntas feitas pelos falantes de chinês fora do quarto. Ao recebe-las consultamos o grande livro, o programa, e pegando em outros tantos símbolos, fazemos as respostas chegar lá fora. Para as pessoas fora do quarto, como estamos a implementar o fantástico programa que fala chinês, somos de facto indistinguíveis de um falante nativo, mas nós dentro do quarto não entendemos uma palavra de chinês, e segundo Searle, mesmo de pois de correr o programa, continuamos sem perceber uma palavra. Mas, pergunta-se Searle, se nós dentro do quarto não temos qualquer compreensão de chinês, como pode um computador a implementar o mesmo programa compreender chinês? Afinal não há nada que o computador tenha que eu não tenha; é mais do mesmo, mas mais rápido.
Nas últimas três décadas este foi talvez o argumento filosófico mais debatidos nas ciências cognitivas, visto pôr em causa a teoria computacional da mente e o projecto da inteligência artificial forte.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Teste de Turing

Outra entrada para o Dicionário de AA.

O teste de Turing, também conhecido por “jogo de imitação”, foi proposto por Alan Turing como um modo concreto de ajuizar se os computadores são inteligentes ou se podem pensar. O teste consiste no seguinte: Um humano, o interrogador, faz perguntas a outro humano e a um computador, sem saber qual é qual (as perguntas são feitas sem os ver, por email ou chat, por exemplo) e tenta com base nas respostas saber qual é o computador e qual é o humano. Se o computador conseguir “enganar” o interrogador, ao fim de um certo número de perguntas e respostas, i.e., se tiver uma conversa com o interrogador que o tornasse indistinguível do humano, então passa o teste.

Para Turing, um computador que passasse o teste um número de vezes e com uma boa taxa de sucesso, não seria uma mera simulação, mas sim seria genuinamente inteligente e teria uma mente. Quando propôs o teste, em 1950, Turing avançou a ideia de que não faltaria muito até que os computadores começassem a ter bons resultados no teste. Até hoje nenhum computador passou de um modo claro o teste de Turing.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Tipo/Espécime

Outra entrada para o Dicionário.

Um espécime é um exemplo de um certo tipo. Assim “Gato, Gato, Cão” contém dois tipos e três espécimes de palavras; dois espécimes do tipo Gato e um do tipo Cão. Assim como na terra há vários biliões de espécimes (as várias pessoas individuais), do mesmo tipo, humano.

Epifenómeno

Mais uma entrada para o Dicionário.

Em filosofia da ciência/mente/psicologia, um epifenómeno é algo que não tem poderes causais no que respeita um dado processo, sendo muitas vezes apenas um subproduto do mesmo. Assim o fumo que vemos e o ruído que ouvimos de um comboio em movimento são causados pelo motor do comboio mas não causam eles o movimento do comboio. Se as propriedades mentais forem epifenomenais, então não podem causar as nossas acções.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Aleatoriedade

Vou aqui deixar a primeira versão das entradas que estou a escrever para o Dicionário escolar de filosofia de Aires Almeida.

A aleatoriedade de um processo ou sistema refere-se à incapacidade de prever o desenvolvimento no tempo desse processo.
Suponha-se que imediatamente a lançarmos um par de dados, paramos o tempo. Será que podemos dizer que números vão sair? Admita-se que o mundo é determinista. Se não soubermos as leis da natureza ou houver imprecisão no nosso conhecimento das condições iniciais tudo pode acontecer segunda a nossa perspectiva. Haverá uma aleatoriedade subjectiva, pois depende do nosso desconhecimento das coisas, apesar de haver previsibilidade em princípio.
A descoberta de sistemas deterministas mas caóticos impõe dificuldades acrescidas à nossa capacidade de prever, aumentando a aleatoriedade subjectiva.

Contudo se o indeterminismo for verdadeiro e relevante ao nível macroscópico dos dados, então mesmo com o conhecimento exacto das leis da natureza e das condições iniciais não poderemos saber o que vai suceder. Neste caso não poderíamos dizer com antecedência que números iriam obter pois a aleatoriedade objectiva não permitiria. A interpretação ortodoxa da mecânica quântica oferece esta interpretação.

Miguel Amen

Uma fonte inesgotável de Inquietação Filosófica

Publiquei ontem aqui

Wilfrid Sellars no artigo “PHILOSOPHY AND THE SCIENTIFIC IMAGE OF MAN” descreveu a filosofia como a tentativa de conciliar duas imagens do mundo; a imagem manifesta e a imagem científica. A imagem manifesta apresenta o homem como um agente, a intervir no mundo para satisfazer os seus desejos e vontade.
A imagem científica apresenta o homem como um sistema complexo físico-químico, sujeito a leis naturais.

Nos pontos de encontro deste conflito, zonas sísmicas como a consciência, a acção, o livre-arbítrio, surge, para mim, a inquietação filosófica e os problemas que mais me importam. Julgo que esta discrição de Sellars da origem dos problemas filosóficos é muito comum para filósofos na área da filosofia da mente, e é patente de um modo muito claro na obra do filósofo John Searle. Recentemente Frank Jackson descreve algo semelhante como origem dos problemas filosóficos que o interessam: como conciliar o que pensamos que sabemos sobre nós mesmos, com o que a ciência nos diz e vai descobrindo sobre nós.

O projecto de conciliar estas imagens é explícito no projecto filosófico de Donald Davidson, em particular quando julga o anomalismo do mental como uma condição necessária para a liberdade da acção. Temos assim um exemplo concreto deste conflito em acção e uma concepção do mental desenvolvida com o propósito de conciliar estas duas imagens, tentado no entanto respeitar as intuições por detrás das mesmas. No fim do artigo “acontecimentos mentais” podemos ler o seguinte,

“ Explicamos as acções livres de um homem, por exemplo, apelando aos seus desejos, hábitos, conhecimento, percepções. Tais explicações do comportamento intencional funcionam num enquadramento conceptual afastado do alcance directo da lei física descrevendo causa e efeito, razão e acção, como aspectos de uma representação do agente humano. O anomalismo do mental é assim uma condição necessária para ver a acção como autónoma.”

A ideia de Davidson parece ser esta: Não há leis psicofísicas nem psicológicas estritas, logo não podemos de forma rigorosa prever o comportamento humano, porquanto o baseemos no conhecimento da psicologia destes. Por mais que saibamos, ao íntimo detalhe, da psicologia de um indivíduo, jamais poderemos com precisão saber as suas próximas decisões ou escolhas, os seus desejos próximos ou como vai governar a sua vida.
Compare-se isto com o que diz Daniel M. Wegner sobre a psicologia“Uma equipe de psicólogos poderia estudar os pensamentos, emoções e motivos por ti relatados, o teu material genético e a tua história educacional, experiência e desenvolvimento, a tua situação social e cultural, as tuas memórias e tempos de reacção, a tua fisiologia e neuroanatomia, assim como muitas outras coisas. Se eles, de alguma forma, tivessem acesso a toda informação de que precisassem, a suposição da psicologia é a de que poderiam desnudar os mecanismos que dão origem a todo o teu comportamento e assim, poderiam decerto explicar porque pegaste neste livro neste momento”
O conflito é claro. Se o que a psicologia científica nos diz é verdade então muito do que pensávamos que sabíamos sobre nós não pode ser verdade. Pode parecer que escolhemos as nossas acções livremente, autonomamente, mas se calhar, dado o que diz Wegner, isto é uma ilusão.

Davidson nega tudo isto. Nega a existência de tais leis, e por conseguinte a possibilidade de uma psicologia científica. Por mais que se saiba da psicologia do homem, dado a inexistência de leis estritas que regem o comportamento humano, não é possível ir mais além do que o avançar de generalizações mais ou menos precisas acerca do comportamento humano.
Mas note-se que estas generalizações não parecem ameaçar a liberdade humana, pelo contrário, estas parecem ser o tipo de generalizações que compactam muito do nosso conhecimento psicológico, de nós e dos outros. Por exemplo, achamos que se alguém até hoje é de confiança, honesto, atencioso para com os outros, responsável, sem ponta de violência, não iria por 10000 euros torturar uma criança. Afinal isto é o que representa em parte conhecer o carácter de alguém, e tal não é de todo uma ameaça à liberdade humana, pelo contrário. Mas também sabemos que por vezes surpresas acontecem, o que dá sal à vida em sociedade.

Davidson parece pensar que dado que não há leis que subsumam os estados psicológicos humanos, não é o caso que dadas certas crenças X e certos desejos Y, acção Z seja inevitável, e que isto seria suficiente para a autonomia da acção humano, autónoma em relação à força cega da leis estritas que regem o mundo físico. O nosso ritmo não é, assim, o mesmo que faz dançar os planetas. Davidson como uma espécie de anti-Newton.

Mas agora olhemos para a imagem científica e que para Davidson todo o acontecimento mental é idêntico a algum acontecimento físico, e assim é possível, a cada instante, captar fisicamente, todos os acontecimentos que constituem esse instante. Mas isto significa que todos estes acontecimentos, fisicamente descritos, são regidos por leis estritas. E assim, ao contrário do que Davidson nos diz, é possível prever em forma de lei e estritamente o estado futuro do mundo e dos corpos nele.

Dado isto a autonomia que queríamos preservar parece resumir-se a isto: enquanto usamos o idioma intencional, enquanto nos baseamos nas razões dos agentes para prever e calcular os seus movimentos futuros, enquanto, portanto nos mantemos no discurso da imagem manifesta, não conseguimos mais do que oferecer generalizações, mais ou menos vagas. Contudo dado que cada acontecimento mental é idêntico a um acontecimento físico, é possível saber estritamente o estado futuro das coisas. Parece que a autonomia reside na dissonância entre a incapacidade de prever baseado no intencional, em relação à exactidão nomológico do físico. Mas o problema para Davidson é que não deixa de ser verdade que tudo que nos sucede de acordo com esta teoria é assim regido pela lei física.

Davidson parece assim explicar não a autonomia humana, mas a ilusão da mesma. Mas se acreditamos e levamos a sério a imagem manifesta e a necessidade da conciliação, a inquietação mantém-se e a busca continua.

Miguel Amen

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Liberdade e Controlo

Há toda uma tradição filosófica, que subscrevo, que defende que para haver responsabilidade moral tem de haver liberdade. E para haver liberdade tem de ser possível haver alternativas genuínas em aberto, em momentos importantes da vida de uma pessoa.

Dito isto, a discussão filosófica centra-se muitas vezes na questão sobre se há ou não possibilidades alternativas. O que sugere, talvez, que a satisfação desta condição para a liberdade e, consequentemente, para a responsabilidade moral seria, além de necessária, suficiente (supondo que se verifica certas condições epistémicas). O que não é o caso.

Não se pode confundir a liberdade de um agente com a existência das várias alternativas em aberto que esse agente podia seguir. O que falta aqui é a capacidade de o agente adoptar como sua uma dessas possibilidades. Afinal, a opção por um caminho não pode ser meramente aleatória. O agente tem de ter controlo sobre qual dos caminhos será o seu.

Quando pensamos em possibilidades alternativas, neste contexto, temos de ter sempre presente a noção de controlo, pois sem ela há algo que acontece, talvez em nós, que nos faz seguir um e não outro caminho, mas isto não será bem a liberdade. Pois esta não só pressupõe a possibilidade de haver mais do que um caminho mas também a ideia de que a escolha do caminho está sob o controlo e domínio do agente. Falar de controlo lembra-nos que falar de liberdade não é só falar de possibilidades, mas de possibilidades que adoptamos e que fazemos nossas.

Miguel Amen

terça-feira, 1 de julho de 2008

Sobre a Unidade das Ciências

Há um velho sonho positivista de um estado futuro em que todas as ciências — da astronomia à psicologia, passando pela química, biologia, sociologia, economia... enfim: as ciências especiais — acabariam por ver, mais cedo ou mais tarde, o seu vocabulário expresso e definido em termos do vocabulário da física fundamental. Há a física e depois há coleccionadores de selos.

Contudo, este sonho positivista mistura duas teses. Uma delas, a tese metafísica, é plausível, ao passo que a outra, a tese epistemológica, o é muito menos. Parece plausível que, de facto, tudo seja físico, na medida em que todos os objectos parecem ser ou objectos postulados pela física fundamental ou constituídos por objectos desse género, em aglomerados cada vez mais complexos. Esta tese metafísica parece ser aceite nas ciências e faz parte da filosofia naturalista que encontramos, por exemplo, na filosofia da mente dos nossos dias — o postulado que afirma: “na minha filosofia não há matéria fantasmagórica”.

A tese epistemológica, que afirma que todo o conhecimento científico é essencialmente conhecimento em física fundamental, parece muito menos plausível. Assim, uma lei psicológica como esta: “as pessoas evitam, em geral, ser expostas a choques eléctricos”, teria a sua expressão última e acabada em termos do vocabulário da física fundamental, assumindo a forma de uma lei física, e seria assim mais uma expressão de uma regularidade do mundo a não escapar ao alcance explicativo universal da física.

A possibilidade de realização múltipla de certas propriedades das ciências especiais e a consequente classificação entrecruzada das taxonomias das diferentes ciências mostra com particular clareza os problemas subjacentes ao sonho positivista.
Pode ser que toda a minha constituição seja, sem excepção, devidamente física. Isto, contudo, não implica que as propriedades psicológicas indutivas que permitem a formulação de teorias psicológicas acerca de mim e de outros seres humanos tenham expressão em termos de propriedades físicas. Isto porque, do ponto de vista físico, pode simplesmente não haver seja o que for em comum entre várias exemplificações desta lei psicológica em diferentes agentes cognitivos. Basta para isso que as propriedades mentais sejam multiplamente realizáveis.
Para o positivista só haveria essencialmente uma forma de explicação (causal): a explicação física; porquanto todas as outras se reduziriam a esta. Mas como acabámos de ver, se for verdade que a taxonomia das várias ciências se entrecruza entre elas e com a física, a verdade da tese metafísica não significa que todas as explicações sejam explicações físicas. Não sei se isto é verdade ou não. Sabemos, contudo, que não se pode misturar a tese metafísica com a tese epistemológica, como fez o positivista, sem incorrer em erros e incompreensões.

Onde ficamos com isto? A meu ver, perante um difícil problema filosófico: o de compreender a relação entre as ciências especiais e a física. Porque se por um lado temos razões plausíveis para questionar o modelo positivista, por outro não passamos a ter menos perplexidades. Queremos que entre as ciências especiais e a física haja uma relação tal que: 1) seja compatível com a irredutibilidade das primeiras, 2) forneça um modelo do seu poder causal, na medida em que supomos que as explicações dadas pelas ciências especiais são explicações causais genuínas, independentes das que são dadas pela física. Não é tarefa fácil. Na verdade, penso que não se pode resolver o problema nestes termos. Mas deixo-o para outro dia.

Miguel Amen

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Alguma terminologia no debate sobre o livre-arbítrio

· O livre-arbítrio é a capacidade das pessoas para exercer controlo sobre a sua conduta, de uma forma necessária para a responsabilidade moral.

· O determinismo é a tese de que o passado, mais as leis da natureza, determinam, a cada instante, um único futuro.

· O compatibilismo é a tese de que o livre-arbítrio é compatível com o determinismo.

· O incompatibilismo é a negação do compatibilismo.

· O determinismo moderado é a tese de que o determinismo é verdadeiro e de que temos livre-arbítrio. O determinista moderado é um compatibilista.

· O determinismo radical é a tese de que o determinismo é verdadeiro e de que não há livre-arbítrio. O determinista radical é um incompatibilista.

· O libertismo é a afirmação do livre-arbítrio e do incompatibilismo. Do libertismo pode-se derivar que o mundo é indeterminista.

· O incompatibilismo radical é a tese de que não há livre-arbítrio independentemente da verdade do determinismo.

Miguel Amen

segunda-feira, 12 de maio de 2008

O que é isso de investigação em filosofia?

Esta não pertence ao tipo de questões que normalmente me coloque. Tal como o físico que, por exemplo, quer saber mais acerca dos buracos negros, assume com segurança que o valor e o saber epistémico de toda uma tradição que foi aprendendo ao longo dos anos são adequado à tarefa, também eu me vejo confiante na tradição que fui absorvendo ao longo dos anos, de ler, pensar, e escrever filosofia. Tendo sido formado na tradição filosófica anglo-saxónica, que valoriza fortemente o conhecimento, coloco as minhas energias na busca desse conhecimento, assumindo que os métodos, estratégias e modos de pensar que fui adquirindo nos anos de formação são adequados à tarefa. Isto é possível porque uma tradição sadia, que tenha como objectivo central o conhecimento, vai oferecer, prosaicamente, ao estudante que emule os seus melhores praticantes, métodos seguros de o fazer.

Num certo sentido, a pergunta quase parece trivial. Uma vez conhecendo a natureza da filosofia, que tipo de questões põe, e sendo que o objectivo de qualquer disciplina é o de alcançar teorias verdadeiras, então a questão de saber o que é isso de fazer investigação em filosofia parece não ser muito mais do que a questão de saber como justificar estas mesmas ideias e teorias.A minha universidade recentemente questionou-se acerca isto. A resposta que se segue é o resultado não só de olhar para dentro, para aquilo que me parece ser o que faço, mas também de pensar ser o que fazem todos aqueles que admiro em filosofia.

Fazer investigação em filosofia é como fazer investigação nas ciências, como a física, a biologia a psicologia ou a história. As ciências naturais, por exemplo, propõem soluções para problemas específicos, justificando-as sobretudo com base na experimentação. A filosofia faz o mesmo: propõe soluções para problemas, mas justificando-as agora com a argumentação.
Duas qualificações: primeiro, a elaboração do problema filosófico tem uma relação íntima com a história da filosofia, quase inexistente nas ciências naturais. Por vezes, contextualizar ou reformular a pergunta é já um feito considerável. Segundo: A justificação em filosofia, através da argumentação, é um campo vasto. Temos experiências mentais, apelo a intuições, apelo ao senso comum, à coerência com as ciências naturais, coerência interna, e por aí fora.

Claro que se temos uma concepção filológica ou poética da filosofia tudo isto parecerá estranho. Na primeira, o que interessa não são os problemas mas quem disse o quê, quando e onde e embora na segunda se pareça dar valor à pergunta, aparentemente o que interessa é a sua formulação pessoal, sugestiva e emotiva. Nesta concepção poética, o que interessa na pergunta é a própria perplexidade que produz e não a sua correcta formulação como um passo necessário para uma solução.

É evidente que se temos uma compreensão deficiente da filosofia vamos ter dificuldade a compreender o que é fazer investigação em filosofia. É evidente que se não temos uma concepção da filosofia que passe pela formulação de perguntas, iremos ter dificuldade em conceber como pode a filosofia propor teorias para as resolver. E é evidente que se não temos respeito pela pergunta não nos preocupa a veracidade das teorias propostas.

Mas se, como filósofos, temos verdadeiros problemas, inquietações filosóficas que pedem uma resposta, então compreende-se que não nos satisfaçamos com qualquer teoria. A veracidade desta é importante porque é importante saber se temos uma resposta à nossa inquietação ou um apaziguamento ilusório, como um sonho que acalma um desejo. Isto realça a importância, a inevitabilidade da justificação. Quando se leva a sério a pergunta, levar a sério a resposta significa esforçar-se por destrinçar a resposta ou teoria correcta de todas aquelas que não o são mas podem parecer sê-lo – E não há outro modo de o fazer, para nós, mamíferos imperfeitos, tão vulneráveis ao erro, do que através de razões e argumentos que as justifiquem e da caridade e interesse dos nossos companheiros em apontar os defeitos das nossas propostas, os nossos erros, e oferecer melhores razões e argumentos para as sustentar.

Só uma concepção religiosa do mundo, que feche os olhos às imperfeições da nossa origem biológica, pode achar que há outro modo de chegar à verdade. A ideia quase religiosa que muitas vezes se tem acerca de homens e mulheres de génio, supostamente acima da crítica, é um exemplo desta atitude. Enquanto não se interiorizar a nossa origem humilde na savana, não vamos provavelmente compreender com força e consequência a falta de qualquer privilégio epistémico enquanto humanos. Se algo de notável têm os chamados grandes génios do passado, não é decerto o serem escolhidos pelos deuses e ter-lhes sido ditadas as verdades a partir de cima. Mas sim o facto de oferecerem razões e argumentos que pareceram particularmente bons aos seus contemporâneos e sucessores. É por isso que os estudamos, para saber se as suas propostas são soluções adequadas e, se não, para não cometermos os mesmos erros.

Vale a pena reflectir neste ponto, pois realça a importância da história da filosofia para a sua compreensão e a importância que nela têm os grandes filósofos do passado. Estes filósofos são importantes mas não como curiosidades históricas, como pessoas que de facto viveram e pensaram em dada época, que publicaram certos livros e defenderam certas teses, mais ou menos aceites aqui e contestadas ali. Isto pode ser mais ou menos interessante como facto histórico e o historiador de ideias não deve deixar de o mencionar. Mas para o filósofo, enquanto filósofo, a importância destes pensadores advém da pertinência que têm para os problemas da filosofia. O modo como nos ajudam a compreender e a tentar oferecer soluções para os vários problemas filosóficos com que deparamos. É porque lê-los nos ajuda a compreender melhor certos problemas e a melhorar as nossas respostas a estes que os lemos com atenção. Para não cairmos nos mesmos erros em que eles caíram e para avançarmos um pouco mais. Assim, fazer investigação em filosofia pode passar por mostrar como o filosofo X ou Y iluminou a nossa concepção de um dado problema, como procuraram dar-lhe resposta, se essa resposta é ou não adequada e, se não o é, como podemos melhorá-la ou o que podemos reter do seu falhanço que nos permita, a nós agora, fazer um bocadinho melhor.

Miguel Amen

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Libertismo e Naturalismo

Julgo que a razão pela qual o compatibilismo tem sido a posição dominante entre os filósofos é a de que não só dá uma resposta positiva ao problema do livre-arbítrio, mas também e sobretudo porque esta resposta se apresenta, de um modo natural, em consonância com o que a ciência nos diz sobre o mundo e nós nele – é assim a posição natural do naturalista.

Mas se há uma vantagem dialéctica do compatibilismo em relação ao libertismo no que se refere à questão do naturalismo, só pode ser porque se associa o libertismo a fenómenos ou a uma metafísica cuja coerência com a ciência e os seus pressupostos metafísicos é duvidosa. E de facto não faltam filósofos libertários que defendem a necessidade de fenómenos causais especiais para dar conta do fenómeno da liberdade da vontade, apelando a um eu numenal, a causas primeiras, a formas de agência especial, como uma muito em voga que apela à causalidade do agente.

Nietzsche, de modo impressionista, capta, na seguinte citação o tipo de anseios que o libertário desta estirpe pode causar no naturalista.

«A Causa Sui é a melhor autocontradição que até agora se imaginou, uma espécie de violação e de monstruosidade lógicas: mas o orgulho desmedido do homem levou-o a embaraçar-se, profunda e terrivelmente, com estes absurdos. A aspiração ao "livre-arbítrio", nesse sentido metafísico superlativo que domina ainda, infelizmente, os cérebros dos semi-instruídos, essa aspiração em tomar a inteira e última responsabilidade dos seus actos, aliviando Deus, o universo, os antepassados, o acaso, a sociedade, não é senão o desejo de ser precisamente essa causa sui e de se puxar a si mesmo pelos cabelos, com uma temeridade que ultrapassa a do barão de Munchhausen, para sair do pântano do nada e entrar na existência»

Mas o naturalista, para se afirmar como libertista, não tem de todo em todo que se associar a estes animais de sete cabeças. O libertista diz que há livre-arbítrio mas que este não é compatível com o determinismo. Neste sentido, a única coisa que se pode com segurança derivar é que o determinismo tem de ser falso. Isto é, que o mundo é indeterminista. E não há nada no indeterminismo por si só que ameace o naturalista, pelo contrário, é possível que o mundo efectivo seja assim. Mas se não há incompatibilidade entre o libertismo e o naturalismo então não pode haver vantagem dialéctica do compatibilismo neste aspecto.

Mas talvez subsista a ideia de que, embora seja verdade que o indeterminismo por si só não ponha o naturalismo em causa, não é suficiente para nos dar o livre-arbítrio, o que parece ser verdade. E seria devido a estas dificuldades que se apelaria a factores estranhos à metafísica científica para explicar o livre-arbítrio.

Contudo há aqui uma confusão. Uma coisa é se o libertismo é incompatível com o naturalismo e, como vimos, não é, outra é se é possível, dadas certas dificuldades — como o problema da sorte e da aleatoriedade — haver livre arbítrio num mundo indeterminista, de um modo que seja consistente com a ciência. Mas neste último caso o que dizemos não é que há vantagem a respeito do naturalismo, mas sim que o compatibilista tem uma teoria e o libertista tem um promessa, se tanto. Mas mais uma vez aqui há uma incompreensão. O libertista tem a posição que tem em parte porque tem argumentos contra o compatibilismo. O libertista é um incompatibilista e por isso acha que não há qualquer teoria do livre-arbítrio num mundo determinista. Assim, dadas as objecções do incompatibilista, não se discerne qualquer vantagem dialéctica do compatibilismo nesta área.

Para terminar, gostava de dizer que não é só Nietzsche, nem é uma coisa do passado, a acusação de menoridade intelectual feita ao libertário ou ao incompatibilista. Recentemente, Donald Davidson acusou de incompetência filosófica os que ainda não entraram no barco do compatibilista. Não é decerto tão mau como chamar-lhes «cérebros semi-instruídos». Contudo, para momentos de dúvida entre os leitores incompatibilistas, fica aqui um comentário recente de Van Inwagen, provavelmente o maior dos metafísicos vivos, incompatibilista de renome, que afirma que embora possa ser verdade que os filósofos são na sua maioria compatibilistas, os que pensaram realmente no assunto são incompatibilistas. Não é um argumento mas uma resposta à medida.

Miguel Amen

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Bryan Magee entrevista Searle, Ayer, Putnam entre outros

Aqui pode ver-se Bryan Magee, autor de “Confessions of a Philosopher”, uma das autobiografias intelectuais que mais gostei de ler, a entrevistar alguns filósofos de primeira linha. A não perder. Magee é não só excelente comunicador, mas domina os temas de que se fala. É raro o nível destas entrevistas.

Miguel Amen

Como definir o livre-arbítrio?


É particularmente difícil dizer o que é o livre-arbítrio sem nos comprometermos com uma ou outra tese de «filosofia substancial» colocando-nos assim num ou noutro lado do debate filosófico. Por exemplo, dizer que ter livre-arbítrio é ser capaz de seguir os nossos desejos ou decisões compromete-nos com uma ou outra forma de compatibilismo e parece, por definição, excluir qualquer forma de libertismo. O que precisamos é de uma noção suficientemente precisa para que saibamos do que estamos a tratar, mas suficientemente maleável para que as várias perspectivas se possam afirmar. A seguinte definição parece-me a mais apropriada,

O livre-arbítrio é a capacidade de pessoas para exercer controlo na sua conduta de uma forma necessária para a responsabilidade moral.

Este controlo inclui uma ou outra compreensão das seguintes ideias: (1) que o agente tenha a capacidade de agir de um modo diferente daquele que agiu, (2) que as suas acções sejam inteligíveis, isto é, racionais, (3) que o agente seja a origem ou fonte das suas acções.

Uma pergunta natural será a de saber porque não se define o livre-arbítrio com base em (1), (2) e (3). Não só é natural mas também algo que se encontra frequentemente nos livros dos filósofos. Contudo julgo que não é correcto faze-lo.

Vejamos porquê. O compatibilista e o incompatibilista, têm ao longo dos anos discordado acerca de (1). O compatibilista tradicional oferece uma analise condicional de “poder fazer de outro modo” que o incompatibilista não aceita. Isto leva por vezes a dizer que há, por exemplo, uma noção de livre-arbítrio compatibilista e outra libertária. Pergunta-se por vezes “será que existe livre-arbítrio tal como o libertista o concebe, ou temos que nos ficar por uma concepção compatibilista?” Mas isto é absurdo. Se assim fosse qual seria o objecto da discussão? O incompatibilista sabe muito bem que dado o determinismo a única análise possível de (1) é a análise condicional. O problema do incompatibilista com esta análise é a de que dado o determinismo não há responsabilidade moral. Os argumentos típicos apontam para o estado do mundo antes de haver homens e dado as leis da natureza, para a inevitabilidade de um dado acto hoje, com vista a despertar a intuição de que o agente nessa circunstância não é responsável pelo seu acto. A analise condicional é contestada pois não capta uma noção de escolha, (1), que seja compatível com a responsabilidade do agente. Assim, os critérios para avaliação da noção de controlo dos nossos actos passam pela noção de responsabilidade moral. A noção de controlo que procuramos não é decidida no vazio, mas com base nas nossas intuições de responsabilidade moral. Só assim se compreende verdadeiramente a interminável discussão entre as facções.

De particular importância na definição que acima proponho é a eliminação de qualquer ideia de livre-arbítrio para este ou para aquele. O problema do livre-arbítrio é o problema de ajuizar se uma dada noção, única, está ou não na posse das pessoas. Só há uma noção de livre arbítrio em discussão entre os intervenientes.

Por isso penso que a responsabilidade moral é o verdadeiro motor do problema do livre-arbítrio. É com base na noção de responsabilidade moral que avaliamos se uma dada teoria T da acção humana que explique (1), (2) e (3) é ou não tal que capta a noção de controlo necessária para a liberdade humana. Se T se verifica (mais as condições morais e epistémicas para a responsabilidade moral), isto é se temos controle sobre as nossas acções tal como T especifica e não temos responsabilidade moral, então T não resolve o problema do livre-arbítrio.

Miguel Amen

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

A robustez das Intuições e o Assalto Tecnicista.

Por vezes parece-me que se perde muita tinta, papel e tempo a argumentar contra ou a favor de uma certa posição de uma perspectiva que, se esta impressão põe o dedo na ferida, tem de falhar. De um modo muito abstracto podemos ver a coisa assim: filósofo A propõe-se defender X apelando a certa intuição ou conjunto de intuições Y, que desenvolve apropriadamente. A isto filósofo B objecta, apresentando uma ontologia na qual aparentemente a intuição se perde. O problema da causalidade mental fornece um exemplo muito claro. Há uma série de pressupostos, como a distinção entre mente e corpo, e a prioridade causal, ou o primado do mundo físico, que apontam de um modo muito claro para problemas na explicação do lugar do mental no processo causal que leva à acção. É uma intuição robusta que está connosco desde pelo menos Descartes, e no entanto parece que certas lições ainda não foi aprendidas. E a lição parece-me ser esta: que se a intuição é robusta, o único modo de combater o problema é lidar directamente com os seus pressupostos, e não fazer reajustamentos técnicos à sua volta. Se a intuição é robusta seria incrível que a mudança de ontologia (se não for num espírito de resposta directa aos pressupostos do problema) eliminasse o problema em causa. O que acontece é que este surge outra vez, com nova roupagem, normalmente de um modo mais técnico. É claro que é preciso responder a estas objecções. O que acho incrível, é que ao fim de um certo tempo e número razoável de tentativas se continue a abordar o problema exactamente do mesmo modo.

O monismo anómalo de Davidson é um exemplo curioso. É um exemplo de uma teoria do mental que tem aparentemente uma resposta ao problema da causalidade mental, e no entanto foi discutido ao longo destes últimos 30 anos sobretudo porque parece conduzir ao epifenomenismo. Por um lado parece mostrar que espécimes (tokens) mentais são causalmente relevantes, mas não convenceu ninguém quanto à relevância das propriedades mentais (há muito mais a dizer sobre este problema, digo algo mais aqui). Mas dentro da perspectiva de que falo tudo faz sentido. Davidson mantém a distinção entre o mental e o físico no que toca às propriedades, mas identifica os espécimes mentais com os físicos. Assim no que toca aos espécimes, elimina uma dos pressupostos que levam ao problema, a distinção entre a mente e o corpo, mas não o faz em relação às propriedades, e por isso o problema surge praticamente na mesma neste ponto, mas com outros pressupostos ontológicos.

Nos últimos 30 anos, o número de artigos publicados sobre causalidade mental foi prodigioso, e no entanto a abordagem tem sido a de manter este erro, com consequências previsíveis. O que se passa é que alguém propõe um novo modo de conceber, ou os eventos, ou a noção de causalidade, ou o modo de compreender as propriedades, e no entanto, no número seguinte da revista alguém mostra o problema da causalidade mental bem vivo, isto porque o autor do artigo não lidou apropriadamente com os pressupostos que deram origem ao problema, mas sim elaborou com um tecnicismo cada vez mais extraordinário, num novo modelo, os pressupostos anteriores.

O mesmo verifico na questão do livre-arbítrio. Por exemplo, nas intuições de Frankfurt contra o princípio de possibilidades alternativas, é-nos apresentado uma intuição muito forte em que se pretende mostrar que a responsabilidade moral não necessita de possibilidades alternativas. Um dos modos frequentes na literatura de responder a esta intuição tem sido a de questionar a teoria da acção que a intuição pressupõe, ou como conceber os eventos e outros tecnicismos. Mas seria incrível se uma intuição robusta pudesse ser ultrapassada deste modo. Não me entendam mal – não estou a dizer que não se responda a estas objecções. È essencial responder-lhes. É em parte porque se respondeu com sucesso a elas que sabemos que a intuições que apresentamos são robustas e não triviais. O que estou a dizer é que ao fim de umas quantas tentativas deste género parece incrível não levar a sério a intuição e notar que algo de fundamental está em jogo, e não um simples problema técnico de coerência interna. O que é preciso é perceber que mais um reajuste aqui ou ali não vai resolver o problema e que temos de lidar com ele directamente, com os seus pressupostos que lhe dá origem. Combater intuição, o sumo filosófico, e não os detalhes.
Será que esta impressão adquirida nestas áreas em que tenho trabalho se generaliza? Ou terá sido má sorte? A minha impressão é que se generaliza...

Miguel Amen

sábado, 2 de fevereiro de 2008

A Ofa e o Formato das Conferências


Sábado passado fui à OFA. Foi uma experiência boa, e no modelo certo, à qual as conferências se deveriam aproximar. Há qualquer coisa de anacrónico no modelo actual das conferências, no qual o filósofo fala do seu trabalho pressupondo que o ouvinte não o conhece, e depois segue-se um período de discussão proporcionalmente muito curto ao tempo que falou. Talvez pré-internet não pudesse ser de outro modo. Mas hoje em dia não há qualquer razão para que os autores não coloquem disponíveis (ou os organizadores, como no caso da OFA) os textos, uns dias antes, para que os interessados os possam estudar. Penso que isto melhorava muito a experiência quer como autor quer como ouvinte e participante. Como autor, poderia esperar perguntas e toda uma discussão com um grau de sofisticação muito superior. Muitas das perguntas que se ouvem nas conferências são básicas, triviais, onde se quer perceber, muitas das vezes, pontos básicos da tese do autor, pontos esses que seriam óbvios na leitura do texto. Mas esta incompreensão é quase sempre condição suficiente para minar a discussão. Pressupondo a leitura do texto também se poderia aumentar muito do tempo de discussão (que é o mais interessante quando se tem o autor por perto) e diminuir aquele em que o autor apresenta o trabalho. Do ponto de vista do ouvinte isto seria um progresso significativo. Falando muito pessoalmente, sempre achei bastante aborrecido ouvir alguém ler (sim, ainda se lê muito nas conferências) sobre um tema que provavelmente não é a minha especialidade, durante 45 minutos. E mesmo que a apresentação seja boa, ideal, é quase sempre verdade que se o que se fala não é trivial, se contém um pouco de sofisticação, requer tempo e reflexão para que se possa aproveitar e perceber. Recordo-me de uma apresentação em Londres, uma das primeiras a que fui, em 2000 ou 2001, com os meus colegas de licenciatura, por D. H. Mellor, sobre filosofia do tempo, onde os t e os t’ abundavam, onde possivelmente ninguém realmente percebeu o que se estava a passar. Isso foi claro no grupo grande com quem fui e notou-se de sobremaneira nas perguntas. Para qualquer pessoa, 15 minutos de contacto com o texto anteriormente teria sido um progresso significativo, algo que penso que se generaliza.

Miguel Amen

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Dois Dilemas Para Frankfurt

Deixo aqui o artigo sobre o qual falei na conferência Mlag na FLUP a 10 de Janeiro. É trabalho em progresso e por isso todos os comentários são especialmente bem vindos. A última secção em particular merece maior reflexão. Digam coisas.

Miguel Amen

domingo, 9 de dezembro de 2007

Um Dilema para Frankfurt?

Este é o título do artigo sobre o qual vou falar na conferência MLAG 2: Porto - 10, 11 e 12 de Janeiro de 2008. Detalhes sobre a mesma aparecerão por aqui mais tarde.
Assim que tiver uma primeira versão do artigo coloco-a aqui. Entretanto cá fica o abstract.

Neste artigo começo por situar as experiências mentais de Frankfurt na dialéctica entre o compatibilista e o incompatibilista e como esta se alterou de forma fundamental desde a publicação de “Alternate Possibilities and Moral Responsability” em 1969. Passo depois a considerar o que muitos filósofos entendem ser a principal objecção a Frankfurt.
Um importante argumento que o incompatibilista tem usado para resistir aos exemplos dados pelas experiências de Frankfurt é apontar o facto de que estas experiências parecem necessitar, para que o interveniente contrafactual faça o seu trabalho correctamente, de um sinal prévio, de forma que este saiba se precisa de actuar ou não. Mostrarei, de forma breve, que a tentativa por parte de alguns filósofos para prescindir deste sinal não é eficaz.
Contudo a relação entre o sinal e a acção é problemática, o que se pode ver na forma de um dilema: Ou o sinal é suficiente nas circunstâncias para a acção A ou não é. Se é, então o incompatibilista pode simplesmente acusar Frankfurt de petição de princípio e nesta situação o incompatibilista não tem de aceitar que o agente é responsável. Por outro lado, se o sinal não é suficiente para A, então parece que o agente pode fazer de outro modo.
Desenvolverei um exemplo de uma experiência mental de Frankfurt para mostrar como este dilema pode ser evitado, vindicando Frankfurt contra esta importante objecção.


Miguel Amen

sábado, 8 de dezembro de 2007

Porque não sou compatibilista

Há muitas razões porque não sou compatibilista. Nos próximos meses vou falar aqui dessas razões. Hoje começo por fazer uma apresentação breve de uma velha intuição sobre o que está mal com o compatibilismo.

Intuitivamente, se a um indivíduo não lhe está aberto um dado caminho de acção, por que lhe é vedado pelo poder do estado, porque forças físicas maiores o impedem, ou porque está possuído de certas compulsões psíquicas que o forçam, então, não parece muito razoável dizer que agiu erradamente quando achamos que esse seria o caminho moral – afinal ele não poderia fazer tal.
O modelo de liberdade que está subjacente ao principio de possibilidades alternativas é aquele no qual o agente tem ao seu dispor um leque de possibilidades de acção e tem controle sobre, de entre estas possibilidades, qual delas toma como sua.

A discussão entre o compatibilista e o incompatibilista centra-se, de forma decisiva, na questão de saber exactamente como se deve compreender a possibilidade de fazer de outro modo, isto é, como entender esta noção de controlo. O compatibilista, como o nome o diz, acha que a liberdade e a responsabilidade moral é compatível com o determinismo, enquanto o incompatibilista acha que estes conceitos essenciais para uma vida humana, se perdem num mundo determinista.
O problema para o incompatibilista é que o determinismo apresenta um mundo no qual nos é apresentado apenas um caminho pela frente. Um mundo, recordemos, é determinista se e só se, o estado do mundo num dado momento particular da história desse mundo fixa o estado do mundo em todos os momentos subsequentes, de acordo com as leis da natureza. Posto isto só há um estado possível das coisas, em cada instante. Um pouco como um comboio que percorre uma linha na qual nunca há bifurcações. O incompatibilista, questiona então como é que podemos ser responsáveis pelo que fazemos se não temos qualquer controle sobre o que fazemos. Afinal, uma vez estando numa dada linha da vida, tudo o que acontece, não poderia deixar de acontecer, pois o determinismo significa que em nenhuma altura nos deparamos, na linha onde a nossa vida se desenrola, com uma bifurcação. E portanto perdemos a liberdade subjacente ao princípio de possibilidades alternativas, pois não temos controlo sobre as várias possibilidades de acção visto que simplesmente não há mais de que um caminho a seguir. Assim, parece plausível pensar, não há qualquer controlo a exercer.
Portanto, para o incompatibilista não há responsabilidade moral num mundo determinado, visto que é pelo exercício deste controle que somos responsáveis.

O compatibilista, por sua vez, acusa o incompatibilista de analisar erradamente, e portanto ter uma concepção desadequada, do que é ter controle sobre os nossos actos. Este diz que a possibilidade de agir de outro modo deve ser analisada condicionalmente. Deste modo: Se nós tivéssemos desejado fazer algo diferente do que fizemos então teríamos feito algo diferente. O que importa para termos controle sobre a nossa vida é que possamos fazer o que queremos fazer. O compatibilista, tradicionalmente, defende a noção de controlo em discussão, mas dá-lhe uma interpretação própria. Na medida em que os desejos e a vontade do agente fossem diferentes do que são o agente teria agido de modo diferente e portanto seguido caminhos de vida diferentes. Assim, não só temos várias possibilidades de acção, como elas parecem estar sobre o controlo do agente, visto que dependem da vontade do agente.
E porque podemos fazer de outro modo, mesmo num mundo determinista, o compatibilista acha que somos por vezes responsáveis pelo que fazemos.

Esta análise condicional de possibilidades alternativas tem sido muito influente, mas não convenceu até estes dias o incompatibilista. Este acha, tal como o autor destas linhas, que o compatibilista não vai ao fundo da questão, e tenta através de um artifício técnico ultrapassar uma dificuldade de fundo na sua posição. A intuição do incompatibilista é a de que não faz sentido dizer que poderíamos desejar outra coisa visto que tal não é compatível com uma linha da vida sem bifurcações. Se desejamos A, então não faz sentido dizer que poderíamos desejar B, dado que na linha da vida onde estamos somos a pessoa que desejamos A e não B. Isto é, dada a historia pessoal até aqui, não é possível ter outros desejos daqueles que temos se o determinismo é verdadeiro. Dada a linha da vida onde estamos, num mundo determinista, não faz sentido dizer que poderíamos fazer de outro modo, pois tal significa que teríamos de ter desejos diferentes, e isso significava que teríamos de estar noutra linha da vida, como se pudéssemos saltar de uma linha de comboio sem bifurcações para outra, para que possamos chegar a um destino diferente, mas que partiu de uma estação que não a nossa.

O compatibilista, olha para a possibilidade do determinismo, mede-lhe as consequências, e encolhendo os ombros como “bom naturalista”, aceita-as. A análise condicional da possibilidade de agir de outro modo mais não é do que isto : Raskolnikov é responsável por matar a velha rica. Matou-a por que quis. Meditou longamente no assunto e a sua vontade de dinheiro e sonhos de independência, aliado à falta de humildade levou-o a fazer o que fez. E o que fez reflecte a sua personalidade, quem ele é. Ninguém o forçou a tal. Se Raskolnikov tivesse um carácter diferente, se pensasse diferentemente, se desse devido valor à vida da velha e não sobrevalorizasse a sua, então, não teria assassinado a velha. Para não ter assassinado a velha bastaria tão-somente isso – não ter decidido faze-lo – visto que ninguém o forçou.
Mas agora note-se o que significa poder decidir diferentemente. Significa ter desejos outros, personalidade outra, várias crenças outras etc. mas tal só é possível se Raskolnikov estivesse noutra linha da vida. Se, deixando os seus genes constantes, tivesse tido uma experiência de vida que o levasse a alterar ou a nunca ter tido o tipo de pensamentos que teve naquele fatídico dia de sangue. Ou a nunca, por exemplo, ter tido conhecimento da existência da velha. Mas, dado o determinismo tal significa, que toda a história do mundo teria de ser outra. Outra forma diferente de se poder chegar a uma escolha distinta seria se Raskolnikov tivesse tido genes diferentes. Mas o significado é o mesmo – a história causal do mundo teria de ser toda uma outra desde o início do tempo.

Podemos então ver o que significa poder fazer de outro modo para o compatibilista: Raskolnikov é responsável pelo que fez pois poderia não ter matado a velha, afinal se o Big Bang tivesse sido ligeiramente diferente, ele não a teria morto! Ora aí está uma forma de ancorar as nossas intuições morais!

Um dia destes vemos a inquisição espanhola mandar prender o Big Bang.

Miguel Amen

Searle on Free Will

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

A estratégia da centelha de liberdade a favor das possibilidades alternativas II

Continuo o post de ontem.

Analisamos brevemente duas respostas a mostrar como ainda há possibilidades alternativas nas experiências de Frankfurt. As experiências de Frankfurt têm como objectivo mostrar que se pode ser moralmente responsável pelas nossas acções apesar de não se poder agir de outro modo. Mas se as objecções avançadas quer na primeira como na segunda versão estiverem correctas então mostra-se que as experiências de Frankfurt falham o alvo, pois é verdade que o agente, Jones, quando Black não intervém, é responsável pelo que faz, mas também é verdade que tem possibilidades alternativas.

Contudo não me parece que estas objecções a Frankfurt estejam correctas. Nas experiências de Frankfurt, é um facto proeminente que quando Black intervém e força a decisão e a acção, o agente não é responsável pelo que faz. É evidente que o agente esta a ser compelido a agir de determinada forma. Mas note-se que o mesmo sucede nas objecções apresentadas, tanto na primeira como na segunda versão.

Na primeira, quando Black intervém, o agente executa uma acção diferente daquela executada pelo agente quando Black não intervém, mas não deixa de ser verdade que esta acção não é uma acção pela qual o agente, Jones, é responsável.
Na Segunda versão, Jones é responsável por matar o presidente por si mesmo, mas já não o é, na possibilidade alternativa, de não matar o presidente por si mesmo, pois nesta possibilidade alternativa, Black intervém e força a decisão e a acção.

Assim, em ambos os casos, o agente tem uma possibilidade alternativa na qual não é livre de exercer qualquer livre-arbítrio, pois a mera possibilidade alternativa inclui sempre a força decisiva de Black no correr dos acontecimentos – as coisas sucedem a Jones que Black quer que aconteçam – que está verdadeiramente em controlo.

Admitindo que a estratégia da centelha de liberdade introduz possibilidades alternativas nas experiências de Frankfurt, a questão que se põe é a de saber porque é que a responsabilidade moral de Jones depende de possibilidades alternativas nas quais ele não é livre. Parece razoável pensar que não é uma mera possibilidade alternativa que ancora e em virtude da qual um agente pode ser moralmente responsável. Quando damos valor ao princípio de possibilidades alternativas o que estamos a pensar é que o agente poderia ter reflectido, ponderado, decidido e agido de acordo com a sua decisão livremente (no sentido clássico, de se fazer o que se quer fazer sem ser compelido ou coagido). A ideia é a de que há algo de reprovável num indivíduo que cometeu uma acção danosa a alguém quando ele poderia perfeitamente não o ter feito. E não ter feito, devido a razões suas, devido a uma avaliação com competência, da sua situação e dos valores que estavam em causa.
Assim, a estratégia da centelha de liberdade, poderá mostrar que existem possibilidades alternativas nas experiências de Frankfurt, mas parece não mostrar possibilidades alternativas moralmente relevantes.

A intuição por de trás das possibilidades alternativas para a responsabilidade moral é a de que o indivíduo possa, de alguma forma, seguir o seu próprio caminho num mundo genuinamente bifurcado, com várias alternativas genuínas. E é porque ele escolheu mal quando poderia escolher bem, que ele merece a nossa indignação, ou caso contrário, a nossa admiração. A ideia é a de que é em parte em virtude de que se poderia ter agido, com responsabilidade, de livre vontade, de outro modo, que torna a nossa acção de facto executado algo sobre o qual temos responsabilidade. Uma possibilidade alternativa na qual um agente é compelido e não tem responsabilidade não parece ser um bom fundamente para explicar porque é que eu tenho liberdade na sequencia actual.

Assim, enquanto é importante para refutar Frankfurt que se mostre que existem possibilidades alternativas nas suas experiências mentais, o estratega da centelha de liberdade tem de mostrar que estas possibilidades alternativas são relevantes para a avaliação da responsabilidade moral do agente na sequência actual, isto é, no que ele de facto fez. E nas objecções apresentadas tal não sucede, pois não se percebe como é que adicionar alternativas nas quais o agente não é livre faz a diferença para a avaliação da responsabilidade moral do agente.

Miguel Amen

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

A estratégia da centelha de liberdade a favor das possibilidades alternativas I

A estratégia da centelha de liberdade defende que mesmo os contra-exemplos dados pelas experiências de Frankfurt pressupõem possibilidades alternativas.

Os defensores desta estratégia pensam que todas as variantes das experiências de Frankfurt, que dependem de um sinal prévio, sofrem este problema. Para quem não esteja a par deste problema, e não tenho lido as entradas anteriores veja aqui.

Num exemplo típico, Black sabe quando tem de intervir porque um certo sinal X indica que o agente, Jones, vai decidir de um modo que Black não quer. Assim, uma vez observando X Black actua e faz o agente, Jones, decidir e agir como quer. Contudo se X não aparecer então Black não intervém e Jones faz o que faz sozinho, baseado nas suas próprias razões. A ideia, recordemos, é a de que se Jones decide por si mesmo fazer o que Black pretende ele é responsável, contudo não poderia fazer de outro modo, visto que Black interviria, e Jones decidiria e faria consoante a vontade de Black.

O que o estratega da centelha de liberdade faz notar é que apesar de Jones não poder deixar de fazer e decidir como Black quer, ele tem a possibilidade de decidir e agir como Black quer porque Black interveio. Podemos explicitar esta objecção de duas maneiras distintas (há mais, mas penso que no fim são validas ou não pelas mesmas razões).

Primeira versão

Uma acção é um acontecimento no mundo. E quando dizemos que um agente é responsável por uma dada acção, achamos que ele é responsável por um dado acontecimento concreto no mundo. Se individuarmos os nossos acontecimentos de um modo causal essencialista, isto é, se acharmos que dois acontecimentos são idênticos se e só se tiverem exactamente as mesmas causas, então pode-se ver que caso Black intervenha, as causas da decisão e da acção de Jones são diferentes daquelas que obtêm caso Black não intervenha. Num, Black faz parte da cadeia causal que leva à decisão e à acção, e no outro não. Assim poder-se-ia dizer que quando Jones age como age, pelas suas próprias razões e sem a intervenção de Black ele de facto é responsável, contudo, ele poderia ter agido de outro modo, visto que a sua acção, caso Black intervenha, é uma acção diferente daquele onde Black não intervém, visto que são acontecimentos distintos.
Quando Black não intervém, Jones faz A, e quando Black intervém Jones faz A*. Como A e A* são acontecimentos distintos, Jones quando faz A é responsável, e no entanto pode fazer A*.
É verdade que Jones não pode deixar de decidir de fazer e agir como Black quer, mas não deixa de ser verdade, de acordo com esta defesa, que ele pode originar um acontecimento diferente, obtendo assim uma forma de possibilidade alternativa.
Logo, as experiências de Frankfurt falham.

Segunda Versão

Outro modo de atacar o problema seria através de um diferente entendimento acerca de que é que um indivíduo é realmente responsável. Quando Jones decide matar o presidente, e o faz sem a intervenção de Black, ele não é exactamente responsável “por matar o presidente”, mas sim “ por matar o presidente por si mesmo” , onde se entende que a expressão “por si mesmo” significa algo do género “onde se fez o que fez sem intervenção anómalas de terceiros” . Assim, quando Black intervém e faz com que Jones decida e mate o presidente, pode-se dizer que este não matou o presidente por si mesmo. E assim, Jones tem perante si possibilidades alternativas, visto que pode matar o presidente por si mesmo ou não.

Aqui limito-me a dar uma ideia muito geral e inicial desta estratégia. Vou voltar a ela mais vezes nos próximos dias, pois julgo que apresenta quando apropriadamente desenvolvida uma boa maneira de atacar Frankfurt. Contudo as objecções apresentadas precisam de ser trabalhadas, pois tal como estão têm resposta fácil por parte dos compatibilistas.

Miguel Amen

domingo, 25 de novembro de 2007

Determinismo e Deliberação

Peter Van Inwagen em “An Essay on Free Will” diz o seguinte

“Qualquer um que rejeite o livre-arbítrio não pode consistentemente deliberar acerca de futuros planos de acção. Isto porque, assim vou defender, devido ao simples facto de não se poder deliberar sem acreditar que as coisas acerca das quais deliberamos são coisas que é possível fazermos.”

Julgo que esta afirmação está errada no contexto do determinismo e do livre-arbítrio. Mesmo que o determinismo seja verdadeiro e nós não tenhamos livre-arbítrio e saibamos que não temos livre-arbítrio, quer me parecer que ainda faz todo o sentido deliberar acerca de futuros planos de acção.

Vejamos um exemplo concreto. O Pedro um incompatibilista, que sabe estar a viver num mundo determinista, tem de escolher entre passar o Natal com a família ou apanhar um avião e ir passa-lo com amigos num outro país. Suponhamos que ele sabe que antes de nascer já estava determinado onde ele iria passar o natal, e é claro quando a noite de natal chegar, e ele se encontrar no meio familiar, saberá então que antes de nascer já estava “nas cartas” que ele iria passar o natal com a família. A questão que se põe é a de saber como é que isto tudo elimina o processo de deliberação. Afinal saber que a sua decisão está determinada, não é o mesmo que saber qual vai ser a sua decisão. O determinismo não intima nem evidencia o sujeito sobre o futuro das suas acções! E assim, até muito perto da tomada de decisão, o Pedro pode estar indeciso sobre o que fazer. Ele tem boas e sérias razões para passar o natal com a família, mas também tem boas razões para ir para fora, e passa-lo com os amigos. Como o determinismo, por hipótese, é verdadeiro, a futura acção do Pedro já está bem definida, e não há escapa possível. Mas saber isto não significa que o Pedro não tenha de meditar, pensar seriamente nos prós e contras de ir ou ficar, enfim, deliberar sobre o que quer fazer, para que possa chegar a uma conclusão sobre o que quer de facto fazer.

A questão fundamental parece ser a de que o determinismo, e o facto de sabermos que apenas uma das opções é realmente possível, não significa que estejamos numa situação epistémica tal que saibamos qual é essa a escolha. Afinal a escolha pode ser a que vai ser exactamente porque é o resultado do processo de deliberação.

Compare-se: o Pedro em t0 sabe que em t2 vai decidir passar o natal com a família. Por isso, quando lhe perguntam em t1 onde vai passar o natal, ele imediatamente adopta uma posição de pensador, e medita sériamente durante 10 minutos até que decide o que vai fazer. Claro que isto é absurdo. Se em t0 Pedro já sabe o que vai decidir fazer, não há qualquer meditação a exercer em t1. Mas esta situação não está implicada pelo determinismo. As nossas decisões podem estar todas determinadas sem que nós saibamos o que vamos decidir, antes de fazer o trabalho necessário para remover as dúvidas e indecisões que possamos ter a respeito do caminho de acção que queremos.

Miguel Amen

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Uma nota sobre a distinção entre Determinismo e Fatalismo

Quero aqui ilustrar, através de um exemplo, a diferença entre o determinismo e o fatalismo. Quero fazer isto começando por uma discussão sobre a relação entre o determinismo e capacidade de prever o futuro. Veremos que devidamente qualificada a noção de previsão pode ser usada para explicar o determinismo – na verdade as duas noções podem ser entendidas, de um modo informal, como equivalentes. É na natureza desta qualificação que se pode encontrar um tipo de situação que distingue de forma decisiva e esclarecedora o determinismo do fatalismo.

A noção de previsão tem sido muitas vezes usada para explicar a noção de determinismo. Um dos exemplos mais notáveis é patente na famosa passagem de Laplace

“Devemos considerar o estado presente do universo como efeito do seu estado anterior e como causa daquele que se há-de seguir. Uma inteligência que pudesse compreender todas as forças que animam a natureza e a situação respectiva dos seres que a compõem – uma inteligência suficientemente vasta para submeter todos esses dados a uma análise – englobaria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e os do mais pequeno átomo; para ela, nada seria incerto e o futuro, tal como o passado, seriam presente aos seus olhos”

Mas note-se que o conceito de determinismo é um conceito metafísico – diz-nos como o mundo é. O conceito de previsão é um conceito epistemológico – diz-nos o que podemos saber sobre o mundo. Reflexão sobre estes factos, por si só, deveria alertar-nos para possíveis equivocações. Basta lembrar, por exemplo, as confusões históricas entre, por um lado o a priori/ a posteriori e por outro o necessário/ contingente, que apesar de serem distinções, na epistemologia e na metafísicas, respectivamente, foram a dada altura entendidas erradamente como co-extensivas, isto é, o a priori co-extensivo com o necessário, e o a posteriori com o contingente.

Uma previsão é essencialmente um procedimento prático de se fazer observações e deduções dessas observações de acordo com regras estabelecidas – entre as quais se encontram as leis da natureza que as nossas melhores práticas científicas nos deram. Mas neste sentido, uma previsão não nos dá mais do que uma aproximação a um futuro estado das coisas, e isto por duas razões óbvias: (1) porque as observações que fazemos e que informam os nossos dados iniciais, são, por um lado imprecisas, na medida em que os nossos instrumentos de medida e a nossa capacidade de discriminação são limitadas, e por outro porque a quantidade de coisas que medimos é sempre circunscrita a uma região no espaço sem que possamos excluir a relevância causal do que está fora dela (a nossa capacidade de recolha de dados é muito inferior ao número de acontecimentos e objectos dentro do nosso cone de luz). (2) As deduções que efectuamos, mesmo com os melhores dados possíveis, dependem da qualidade epistémica das leis que constituem as várias ciências, sobre as quais temos muitas incertezas.
Assim as nossas previsões podem ser mais ou menos certas, dependendo da qualidade de (1) e (2) mas não nos podem dar certezas (e nem discuto sistemas caóticos mas deterministas, por exemplo) do estado futuro do mundo. O nosso conhecimento do mundo é compatível com vários futuros incompatíveis do estado das coisas.

Mas um Mundo é determinista se e só se, o estado do mundo num dado momento t0 fixa o estado do mundo em todos os momentos subsequentes, de acordo com as leis da natureza. Posto isto só há um estado possível das coisas, em cada instante. É claro então que a noção de previsão discutida acima não capta o que é fundamental no determinismo. Previsão neste sentido é compatível com o indeterminismo.
Por isso Laplace recorre a um ser de capacidade superiores, uma deidade, para que possa eliminar os defeitos de (1) e (2), de modo que este saiba com toda a certeza as condições iniciais do mundo e as leis da natureza. Por isso tem de se qualificar a equivalência entre determinismo e previsão do seguinte modo: um evento é determinado se é só se em princípio é previsível. A clausula “em principio” garante uma situação ideal na qual (1) e (2) são completamente satisfeitos.

Mas há uma segunda qualificação. A primeira, que acabamos de ver, depende da capacidade de conhecer dos agentes, a segunda qualificação depende do facto de que conhecer é uma actividade de um sujeito cognitivo. A questão que se põe aqui é a de saber se todos os agentes cognitivos podem ter acesso a este conhecimento, supondo que ultrapassaram o primeiro problema. Para ver qual é a dificuldade considere-se a seguinte experiencia mental:

Imagine-se que O. tem ao seu dispor um super-computador que satisfaz tanto (1) como (2) de forma ideal. Estamos a supor portanto que o computador consegue, dado o estado do mundo num dado momento t0 prever o estado do mundo em todos os momentos futuros, t1, t2, t3 etc. Assim O. poderia saber antecipadamente muitas coisas sobre o mundo à sua volta. Por exemplo, O. poderia apresentar duas ou mais escolhas a vários indivíduos e poderia saber antecipadamente qual a sua escolha.
Mas há toda uma classe de acontecimentos que ele, assim parece, não poderia saber antecipadamente, e por isso, que o computador não poderia prever. Para ver isto, suponha-se que O. decide imediatamente após apresentar o leque de opções aos vários sujeitos da sua experiencia, dizer-lhes qual vai ser a sua decisão. Isto é ele diz “Têm de escolher entre P, Q, R...Z, e tu aí (apontando) , eu sei, vais escolher Q, tu P ...etc.” .
Suponha-se contudo que entre estes há um, chamemos-lhe C., que tem por habito fazer exactamente o oposto que lhe pedem, sugerem ou exigem. C. tomando esta previsão como uma imposição à sua pessoa decide fazer consoante o seu hábito, e portanto age de modo diferente daquele que O. lhe apresentou como sua futura decisão. Portanto estamos a dizer que quando O. lendo o resultado da previsão do computador, informa C. como este vai escolher, C. escolhe uma outra opção. Mas agora, nesta situação, o super-computador, mesmo possuindo os dados todos antes da escolha e sabendo todas as leis da natureza, não consegue prever a escolha de C.. Mas note-se que a escolha de C. não deixa de estar determinada. Mesmo antes de C. vir ao mundo, só havia um estado possível do mundo, no momento da decisão de C. perante o leque de opções proposto por O., compatível com o estado do mundo antes de C. nascer. Assim temos um caso onde C. está determinado, mas o super-computador não consegue fazer uma previsão. Dado isto não há uma equivalência entre previsão e determinismo.

O que correu mal na formulação de uma equivalência entre determinismo e previsão neste caso é a possibilidade de interacção entre a previsão e certos actos de decisão acerca da qual a previsão se pronuncia. Um modo de evitar isto, e assim garantir uma co-extensividade entre determinismo e previsão, é que o agente que prevê esteja fora do mundo e sem possibilidade de contacto com este. Neste caso, a situação descrita é eliminada. Assim, podemos formular a equivalência deste modo: um dado mundo é determinista, se e só se, todos os acontecimentos do mundo são previsíveis, em princípio, por agentes fora do mundo.

Mas que tem isto tudo que ver com o fatalismo? A meu ver se há alguma noção de fatalismo apropriadamente diferente da noção de determinismo é a de que independentemente daquilo que fizermos, dos nossos esforços e vontades, há certas coisas que têm simplesmente de acontecer. Suponhamos que estava destinado que C. optasse por A, então não importa seja o que for que C. faça ou tente fazer, ele irá optar por A. A diferença entre um mundo fatalista e um mundo determinista é a de que num mundo fatalista, um deus que sussurrasse aos ouvidos de C. que este iria escolher A não deixaria de ser um mundo no qual C. escolhesse A, por mais vontade e esforço que A pusesse em escolher outra coisa. Mas como vimos nada disto faz sentido num mundo determinista. Afinal, as escolhas e desejos de C. são tão causais como o resto dos acontecimentos à sua volta, e por isso o mesmo sussurro de um deus poderia levar a que C. agisse de outro modo se este o quisesse contrariar, como vimos anteriormente.

A diferença entre fatalismo e determinismo é a diferença entre a livre expressão das leis da natureza sobre as propriedades do mundo, de que as nossas propriedades mentais são parte, e a imposição de vontades divinas, diabólicas ou místicas, sobre as leis naturais. Sem a operação destas forças sobrenaturais não há razão para pensar que C. não possa decidir de outro modo quando lhe sussurram o que vai fazer. Pensar o contrário é supor que algo para além das forças naturais está em operação para que C. não possa exercer a sua vontade.
Haverá uma certa naturalidade em dizer que num mundo determinado todas as decisões e actos de todos os agentes vão ter de acontecer de certa e determinada forma, e por isso que cada um tem um destino especifico à sua frente. Não veja nada de errado nisto, se estamos a falar correntemente, mas convém notar que há uma distinção a fazer em relação ao que acontece devido às leis naturais, e o que acontece com intervenção sobrenatural. É esta distinção que eu quero realçar e cujas implicações estão patentes na experiencia mental discutida.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

A Importância da Metafisica


Quero examinar uma estratégia, senão idêntica, semelhante no espírito, de deflacionar a questão do livre arbítrio e da causalidade mental. Em ambas apela-se às nossas práticas correntes para justificar a crença quer no livre-arbítrio quer na causalidade mental.
Ambas, a meu ver, falham pela mesma razão, o que não é de admirar, visto como já referi neste blog, há uma conexão muito grande entre estes dois problemas que se centra na possibilidade de agência.

Quando se discute o problema da causalidade mental, e se fala da necessidade de vindicar o nosso uso de explicações psicológicas assume-se o realismo causal. Isto é, quando se dá uma explicação causal do género “o João comprou a garrafa de água porque tinha sede” estamos a assumir que as razões do João de facto causam a sua acção. Em particular, que o seu desejo por água teve um papel causal relevante no movimento do seu corpo. Já discuti o problema da causalidade mental neste blog, veja-se por exemplo aqui, e discuti algumas das dificuldades típicas deste problema para teorias particulares da relação mente corpo. Na verdade, julgo o problema da causalidade mental insolúvel dado os pressupostos de fisicalismo não redutivo, onde ultimamente se tem centrado o problema. Não vou agora discutir as razões deste cepticismo, (muitas delas podem ser encontradas aqui) o que ficará para outra altura.

Mas a verdade é que alguns filósofos têm tentado salvar o problema através do que só se poderá chamar de um certo irrealismo causal. A ideia é inverter a relação de dependência entre explicação e causação. Acima vimos que o realismo causal implica que uma explicação causal é verdadeira somente se as propriedades citadas na explicação são de facto propriedades com um papel causal no evento a explicar. Mas estes filósofos, impressionados com a nossa prática explanatória, sobretudo com o nosso uso sofisticado de explicações psicológicas, pensam que é altura de retirar à metafísica o peso excessivo que tem tido na questão da causalidade mental. É-nos sugerido que um bocadinho de reflexão na nossa prática diária, eficaz, e indispensável de nos compreendermos uns aos outros através do idioma intencional, seria suficiente para vindicar a crença de que as propriedades intencionais são causalmente relevantes.

Tyler Burge, um defensor desta estratégia, pensa, correctamente, que as discussões metafísicas e os pressupostos metafísicos que levam às dificuldades com a causalidade mental são muito mais duvidosos e injustificados do que as nossas razões, de ordem prática e pré-teóricas, para rejeitar o epifenomenismo. Burge no entanto vai mais longe e extrai daqui a ideia de que dado o falhanço da metafísica em explicar o problema da causalidade mental está na hora de tomar uma atitude menos metafísica e admitir que as nossas práticas são suficientes para legitimar o uso das explicações psicológicas. Burge não é o único a tomar esta posição, Lynne Baker propõe que se entenda o conceito de causalidade como um conceito explanatório. E dada a nossa prática e uso sistemático da explicação causal psicológica o problema da causalidade mental simplesmente desaparece, ou deveria desaparecer.

Há várias maneiras de responder a esta proposta. Jaegwon Kim defendeu com algum cuidado a ideia de que há algo de cognitivamente dissonante na ideia de duas explicações suficientes de um mesmo fenómeno. Afinal, num caso de causalidade mental teríamos uma explicação psicológica e teríamos sempre à mão uma explicação fisiológica do mesmo fenómeno. Explicações que pretendem ser completas. Mas dado o carácter epistémico de qualquer explicação, a multiplicação de explicações de um mesmo evento não trás a unificação ou iluminação cognitiva que gostaríamos. Afinal queremos saber qual a relação entre as explicações: se são independentes, então como podem explicar o mesmo evento, senão não são, então como estão relacionadas. O que nos parece levar a questões metafísicas uma vez mais, e a recolocar o problema. Esta seria, apropriadamente desenvolvida, uma possível resposta a Burge e amigos. Contudo a resposta que me interessa é diferente e vai mais fundo.
Antes de a discutir, contudo, quero analisar um problema algo semelhante que se pode pôr em relação à questão do livre-arbítrio e como a resposta que pretendo dar ao primeiro problema ilumina também a do segundo.

Peter Strawson propôs uma influente concepção a respeito do problema do livre-arbítrio que é muito semelhante à de Baker e Burge na medida em que defende que para compreender o problema do livre-arbítrio adequadamente temos de prestar atenção não a intrincadas concepções metafísicas; que se debruçam sobre o determinismo ou o indeterminismo – mas sim dar atenção às nossas práticas correntes e às atitudes decorrentes destas praticas quando, dia-a-dia, no nosso contacto com os outros atribuímos a cada um responsabilidade pelo que faz. Strawson defende que quando considerarmos as pessoas à nossa volta responsáveis pelas suas acções estamos preparados para ter várias atitudes para com elas, como admiração, ressentimento, indignação, gratidão, etc., ao que ele chamou de “atitudes reactivas”. De acordo com Strawson, o problema metafísico não é relevante, pois a responsabilidade moral é adequadamente justificada pela nossa adopção das atitudes reactivas uns para com os outros.

O modo como Strawson chega a esta posição é muito semelhante a de Burge e Baker. Por um lado temos uma discussão interminável entre o compatibilista e o incompatibilista acerca da possibilidade do livre-arbítrio que está longe de se decidir. Por outro temos uma queixa do incompatibilista e do libertista contra o compatibilismo que Strawson pensa estar justificada – que a teoria moral do compatibilista é necessariamente de ordem prática e diz respeito ao mantimento de certa ordem social. Por exemplo, que não faz sentido dizer que alguém merece ir preso pelo que ele fez, mas porque o que fez tem de ser evitado. Mesmo a ideia de merecimento parece perder muito do seu sentido, visto que ele vai preso não porque merece, mas para evitar certas coisas que essa pessoa poderia fazer que achamos indesejáveis. Strawson, considera com o incompatibilista, a meu ver correctamente, que esta forma aguada e derivativa de responsabilidade insuficiente. Isto porque parece óbvio que há mais nas nossas práticas e atitudes reactivas que a mera utilidade social. No entanto, Strawson julga insatisfatório o modo como o incompatibilista reage a esta queixa. O incompatibilista afirma que esta noção insatisfatória de responsabilidade advém do determinismo – O que cria imediatamente um movimento contra o determinismo e dá uma razão ao indeterminismo para se afirmar. Impulsionando a dialéctica do livre-arbítrio no seu caminho infindo. Por isso, tal como Baker e Burge, Strawson acha que temos de deixar de pensar em termos metafísicos, mas em termos das nossas práticas morais – são elas e nada mais que sustêm a possibilidade de dignidade humana.

A teoria de Strawson, como a de Burge e Baker, têm um problema comum, que não é o de um certo desprezo pela realidade, visto que estas práticas referidas como justificatórias são bem reais, mas pela metafísica que o contexto de onde os problemas surgem pressupõe. Strawson pensa que não é possível pôr em causa a responsabilidade moral devido a questões metafísicas visto que a responsabilidade moral tem por base práticas humanas que não depende de qualquer metafísica. Não é só que ele pense que é psicologicamente impossível abandonar estas práticas, o que parece muito plausível. Mais importante para Strawson parece ser a ideia de que a questão de saber se é ou não racional comprometermo-nos com as “atitudes reactivas” face ao determinismo ou a qualquer sistema metafísico é absurdo dado o carácter inalienável, enquanto humanos, perante estas atitudes. Este sentimento é frequente no debate da causalidade mental, e está patente nos argumentos de Baker e Burge acima discutidos. Há a ideia sempre presente de que a ubíqua explicação psicológica nas transacções humanas é algo que tem de ser compreendido filosoficamente, apesar de ninguém realmente acreditar (apesar de haver cépticos) que o epifenomenismo poderá ser verdadeiro. Mas dadas as dificuldades metafísicas em dar uma resposta satisfatória ao problema da causalidade mental, estamos a um passo das atitudes de Baker e Burge.

A meu ver há aqui algo de profundamente errado. Penso que este argumento não está adequadamente a compreender o que está em causa caso o epifenomenismo ou o determinismo seja verdadeiro. Pois mesmo que não seja possível para nós enquanto humanos rejeitar quer a causalidade mental quer a responsabilidade moral e a atitudes reactivas há algo que a metafísica do mundo parece ameaçar. Já referi isto no passado e tem que ver com o facto de que tanto o epifenomenismo como o determinismo (se os argumentos do incompatibilista forem aceites) serem ameaças à possibilidade de agentes no mundo. Nós não queremos ser marionetas, nós queremos intervir no mundo, como seres livres capazes de impor a nossa vontade nas coisas – e é aqui que parece ancorar a possibilidade de responsabilidade e dignidade. Mas certas concepções metafísicas parecem implicar que nós não somos mais do que marionetas.

Assim, se é ou não psicológica ou racionalmente manter as atitudes reactivas, ou acreditarmos na causalidade mental, tal não parece ser uma contribuição apropriada para o debate, pois não discute sequer a questão fundamental. Pois pode ser que nós sejamos bonecos nas mãos de um deus qualquer, bonecos a que não é possível pensar que são bonecos ou encarar-se como tal. A possibilidade de nós sermos marionetas é posta pela metafísica das coisas – e como uma marioneta não é um alvo adequado para a atribuição de responsabilidade moral ou objecto de dignidade, mesmo que para nós não seja possível aceitar tal estado das coisas ou viver de acordo com estes factos, a nossas atitudes reactivas e explicações psicológicas podem não passar, apesar de todas estas práticas que as pressupõem e que lhe são essenciais, de moeda falsa.

Jerry Fodor, num contexto de discussão do problema da causalidade mental diz, dramaticamente

“Se não é literalmente verdade que o meu querer é causalmente responsável pelo meu buscar, e a minha comichão é causalmente responsável pelo meu coçar, e o meu acreditar é causalmente responsável pelo meu dizer...se nada disto é literalmente verdade, então praticamente tudo em que acredito acerca de seja o que for é falso e é o fim do mundo.”

Mas o fim do mundo, como vimos atrás, não é o da catástrofe prática de termos de abandonar as atitudes reactivas ou ter de deixar de usar explicações psicológicas. Pode ser que tal não seja psicologicamente possível, nem racionalmente requerido de nós. Mas não deixa de ser verdade que estamos perante uma ameaça séria à nossa autoconcepção. Esta pode ser ilustrada através de uma comparação da nossa situação existencial vis-à-vis a metafísica com o de certas ilusões perceptuais.
Lembremo-nos da conhecida ilusão de Muller-Lyer (a imagem acima) na qual nos é apresentado duas linhas do mesmo tamanho, sabemos que são do mesmo tamanho (tente medi-las) e no entanto não conseguimos deixar de vê-las como uma sendo maior do que outra. Do mesmo modo, a metafísica das coisas pode mostrar-nos que apesar de não sermos mais do que marionetas, não conseguimos deixar de nos ver como seres responsáveis, inteligentes, racionais, e o activos no mundo.

O que está em causa, como já disse, é a possibilidade de agência, sem a qual não somos diferentes das marionetas. Mas para sermos mais do que simples marionetas, precisamos de uma resposta positiva ao problema metafísico da causalidade mental e do livre-arbítrio.
É de notar, quão semelhante é a dialéctica de Burge, Baker e de Strawson. Tal não é uma coincidência.